sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Tigre Celta virou um Haiti financeiro. Mais uma derrocada do neoliberalismo

Reproduzido cartamaior.com.br
18/11/2010

Amnésia neoliberal: como o Tigre Celta virou um Haiti financeiro

Nos anos 80 e 90, a palavra ‘Irlanda’ era pronunciada com a reverencia reservada aos quitutes finos nos banquetes neoliberais. O ‘ajuste irlandês’, iguaria produzida a partir de uma receita de cortes brutais nos gastos públicos, demissão em massa de funcionalismo e isenções maciças de impostos, era vendido nas praças de alimentação do mundo pobre como o cardápio da hora. A Irlanda era por assim dizer a garota do quarteirão do Consenso de Washingnton. Ombrear-se a ela era possível, mas exigiria uma aplicação de ferro, explicavamos os ventrílocos nativos que agora demonstram súbita amnésia em relação ao passado dest aque é a bola da vez da derrocada européia. Recapitulemos então:

1.em meados dos anos 80, a Irlanda adotou um ‘padrão perene’ de ajuste fiscal, cercado de salvas & vivas da ortodoxia mundial;

2.um serviço à la carte foi providenciado na cozinha irlandesa para atender a freguesia do mercado: a anistia tributária veio junto com cortes de despesas e redução dos investimentos públicos em 1987;

3. 14 mil funcionários públicos foram demitidos ou aderiram a programas de demissão voluntária (isso numa população de 4 milhões de pessoas);

4.o ajuste iniciado em 87 veio para ficar. Até meados dos anos 2000, a Irlanda manteve-se fiel à santíssima trindade neoliberal: controle dos gastos públicos, teto no reajuste dos salários públicos [taxa máxima de 2,5% ao ano entre 1988 e 1990 ]e incentivos 'amigáveis' aos mercados [leia-se, desonerações e vale-tudo];

5.o arrocho fiscal produziu, naturalmente, uma redução substantiva da dívida interna derrubando a despesa com juros de modo a obter um permente superávit nominal [outro mantra dos neoliberais];

6. a supremacia dos mercados desregulados cavava, porém, vertedouros subterrâneos que corroíam as bases economicas do país. O foguetório de superfície permanecia: ‘o Tigre Celta’ crescia a taxas chinesas com macroeconomia de paraíso fiscal [nenhuma empresa pagava imposto acima de 12,5%) Quer coisa melhor que isso? Era o prato da hora. Resquícios dessa receita, agora indigesta, ainda frequentam a agenda do grupo pró-mercados que participa da equipe de transição da presidente-eleita Dilma Rousseff;

7. o desfecho irlandês recomendaria maior prudencia na transposição de seus fundamentos aos ares tropicais. Os números indicam que o banquete redundou em um artordoante desarranjo gastrointestinal que transformou o ‘Tigre Celta’ numa espécie de Haiti financeiro. A saber:

a) a economia irlandesa degringola desde a explosão da bolha financeira em 2008: de lá para cá o país acumula uma queda de apreciáveis 11,6% do PIB , taxa que o coloca algumas cabeças à frente do que se poderia chamar de recessão. Depressão talvez seja um termo mais apropriado para a convalescência de sangue, suor e lágrimas que pode durar até 15 anos;

b) a Irlanda quebrou quando os fluxos de capitais deixaram de alimentar a ciranda doméstica ancorada em desonerações atraentes aos fundos especulativos, cuja maior obra foi a bolha a imobiliária, agora em estado terminal.

c) A ex-queridinha dos mercados desregulados atingiu um déficit fiscal 12% do PIB este ano e terá que reduzí-lo a 4% até 2014. O nome disso é arrocho.

d)os preços dos imóveis já perderam 50% do valor; a inadimplencia grassa junto com o desemprego, a fuga de capitais e o arrocho salarial. Há milhares de imóveis vazios e os bancos estão virtualmente falidos: para salvá-los, o país negocia um empréstimo de 100 bilhões de euros com o FMI, sujeito às condicionalidades conhecidas.

e) O que a frivolidade midiática esquece, porém, é que o ‘Tigre Celta’ quebrou, sobretudo, porque não dispunha mais de políticas públicas, de aparato público, de fôlego fiscal e, sobretudo, de ideologia do interesse público para contrastar a derrocada dos mercados especulativos com medidas anticíclicas em defesa do emprego e da sociedade.

f) O ajuste irlandês’ cantado em prosa e verso pelos bardos da mídia nativa havia reduzido o país a mera extensão dos mercados. Sem contrapesos institucionais soberanos, perdera a capacidade de reagir aos instintos suicidas aflorados em seu próprio metabolismo. A crise estava na essencia da Irlanda e a Irlanda se transformou na essencia da crise. Que sirva de alerta aos discípulos da 'agenda das reformas' que participam ativamente da equipe de transição da presidente eleita Dilma Rousseff.
Postado por Saul Leblon às 06:29

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