segunda-feira, 3 de maio de 2010

Decodificando o discurso de FHC

2 de maio de 2010 às 20:56

Uma análise do “discurso” de FHC

Devaneios de um ex-sociólogo com nostalgia do poder
por Leandro Paterniani, no Boteko Vermelho, sugerido pela leitora Lúcia Orpham
O ex-ministro Mário Henrique Simonsen, em um dos seus inúmeros textos acadêmicos, advertiu certa vez sobre o risco inerente ao papel de crítico: para Simonsen, a crítica deve seguir uma linha coerente já que “é tarefa do sábio e tão igualmente do idiota”. Partindo dessa consideração, passemos a analisar mais de perto a postura assumida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que, após ficar um bom tempo longe dos holofotes, voltou à cena em janeiro deste ano, dirigindo ao governo Lula e ao PT uma variedade de críticas, a esmagadora maioria delas construídas sob alicerces frágeis.
Verdade é que FHC se aproveita de sua erudição e, valendo-se de um sistema de jogos de palavras, cria conceitos, cita filósofos e emite juízos de valor do alto de sua torre de marfim: é o suficiente para que os mais desavisados – ou intelectualmente desonestos – passem a repetir as palavras do ex-sociólogo, sem tomar o mínimo cuidado de checar os alicerces sobre os quais elas são construídas. Neste domingo, 2 de maio, o ex-presidente novamente deu o ar da graça e publicou no Estadão um artigo intitulado “Construir sem demagogia”.
Uma coisa temos que admitir: FHC, ao contrário de seus seguidores menos letrados, se esforça para politizar o debate, o que é bom para a democracia brasileira, pois evidencia o papel assumido por cada um no jogo político. Mas é também natural esperar que seja essa a postura adotada pelo ex-presidente, visto que o que ele faz nada mais é do que uma defesa política do projeto que ele, quando governo, implantou no país. Talvez seus seguidores não façam essa defesa com tamanha veemência por não quererem correr o risco eleitoral de serem rotulados como “continuidade de FHC”. Como FHC não pode negar sua própria identidade – e DNA político – cabe a ele advogar em defesa própria.
A instrumentalização errada do Plano Real
No artigo deste domingo, FHC parte de uma avaliação correta: “época de campanha eleitoral é propícia à demagogia”. Contudo, o estilo vaidoso do ex-sociólogo lhe prega aqui uma peça: procurando apontar uma suposta demagogia nos discursos do presidente Lula e do PT, FHC fala de si mesmo ao longo de todo o artigo, exercitando a tal “demagogia” que ele procura incansavelmente no atual governo. Afinal de contas, o que o ex-presidente quer fazer acreditar é que os êxitos alcançados no governo Lula foram herança do período em que ele – FHC – estava à frente da Presidência.
Para isso, o ex-sociólogo lança mão de uma análise superficial sobre o Plano Real: “os mais destacados economistas do PT daquela época, Maria da Conceição Tavares, Paul Singer e Aloizio Mercadante, martelaram a tecla de que se tratava de jogada eleitoreira. Não quiseram ver que se tratava de um esforço sério de reconstrução nacional, que aproveitou uma oportunidade de ouro para inovar práticas de gestão pública e dar outro rumo ao País”. Aqui FHC não esclarece que os economistas do PT dirigiam suas críticas não ao Plano Real em sua essência,mas sim à instrumentalização do plano.
Faz-se necessário esclarecer ao leitor algumas coisas. Primeiramente, o Plano Real não foi uma invenção de FHC: o Real e o Cruzado tiveram uma mesma base teórica, que foi a Proposta Larida,de 1982, feita a partir da tese de pós-doutorado de Pérsio Arida no MIT (Massachussets Institute of Technology), nos Estados Unidos. Contudo, o Cruzado pecou em dois aspectos: o primeiro deles em não criar uma unidade monetária de transição (como feito posteriormente no governo Itamar, com FHC no Ministério da Fazenda); e o segundo, criar um mecanismo de gatilho salarial, que serviu para retroalimentar a inflação no país.
Devemos esclarecer também que o Real foi instrumentalizado utilizando-se a política cambial para conter a inflação: instituiu-se a paridade, fixando-se o câmbio como forma de assegurar o controle de preços. E aqui neste ponto estavam as críticas dos economistas, já que os efeitos dessa medida artificial poderiam ser desastrosos para a economia (como quase foram, de fato). A política de câmbio fixo segurou a inflação? De fato, enquanto o governo conseguiu controlar a paridade cambial, a inflação se manteve sob controle. Mas houve um momento em que o governo não conseguiu mais conter o câmbio.
E o que aconteceu então? Houve a maxidesvalorização do real frente ao dólar, em janeiro de 1999, como previsto por muitos economistas cinco anos antes. Nesse momento, FHC se viu obrigado a adotar o câmbio flutuante e passar a adotar o instrumento correto – e que deveria ter sido usado desde o início do real – a Política Monetária. Como a inflação aqui já estava extremamente elevada, a equipe econômica se viu obrigada a iniciar um ciclo de aperto monetário – foi o período em que o Brasil teve inflação alta, juros altos, arrocho salarial e desemprego.
E o que FHC não diz no seu artigo é que esse ciclo só foi revertido em 2003, no governo Lula. Graças à equipe econômica de Lula – que tinha, na época, como protagonistas o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci e o presidente do Banco Central Henrique Meirelles – o Brasil conseguiu reduzir a inflação, trazendo-a de volta à casa de um dígito. Não foi, portanto, a política econômica de FHC – baseada na artificialidade cambial – que reduziu definitivamente a inflação no Brasil, mas sim a política econômica de Lula, baseada na política monetária.
A demagogia de FHC sobre as políticas sociais
O ex-presidente também procura, no seu artigo, tomar para si a paternidade de políticas sociais importantes implantadas no governo Lula: “na área social o tripé correspondente ao da área econômica se compõe de: aumentos reais do salário mínimo, desde 1993; implementação a partir de 1997 das regras ditadas pela Lei Orgânica de Assistência Social, atribuindo uma pensão aos idosos e às pessoas com deficiências físicas de famílias pobres; e, por fim, bolsas que, com nomes variáveis, vêm sendo utilizadas com êxito desde o ano 2000. Esses programas, independentemente de que governo os tenha iniciado ou melhorado, tiveram o apoio de todos os partidos e da sociedade”.
Neste ponto, temos que tentar entender se FHC age de má fé intelectual ou se ele de fato não sabe a diferença entre projetos sociais e políticas sociais. Sim, pois ao tentar reduzir o debate à paternidade de “bolsas”, o ex-presidente mostra que ou não entende nada de políticas sociais ou está utilizando o discurso demagógico que serviu como mote ao ser artigo deste domingo. A questão não é quem criou essa ou aquela bolsa, mas qual o conceito político por trás disso: as “bolsas” do governo FHC se resumiam a “projetos” de compensação social e não políticas sociais propriamente ditas.
O ex-presidente, tendo formação em Sociologia, deveria saber que as políticas compensatórias são apenas um aspecto das políticas sociais. Política pública de inclusão social é algo muito mais amplo: uma política social é considerada eficaz à medida que ela se sustenta em critérios que levam o beneficiário do programa a criar condições para sua auto-suficiência dentro de um determinado período de tempo. Neste ponto, existem três níveis de políticas sociais: as políticas redistributivas, as políticas emancipatórias e as políticas de desenvolvimento regional.
As “bolsas” de FHC se restringiam a políticas redistributivas e, ainda assim, com uma amplitude bem baixa. O Bolsa Família, criado no governo Lula, engloba em seu conceito esses três níveis de políticas sociais: ele redistribui renda, possui critérios que levam o beneficiário a ter meios de auto-suficiência dentro de um período de 2 a 3 anos e também lança as bases para o desenvolvimento de regiões anteriormente inóspitas. Ou seja: enquanto FHC fez assistencialismo, Lula fez política social de verdade! Essa é a diferença crucial entre o Bolsa Família de Lula e as “bolsas” de FHC.
O mais do mesmo de FHC
E, por fim, o ex-presidente não resiste e cai no seu discurso predileto: a defesa do Estado Mínimo. “Se esse passo for dado, o debate eleitoral poderá se concentrar no que realmente conta: a preparação do País para enfrentar o mundo atual, que é da inovação e do conhecimento. As diferenças entre os contendores recairão sobre a verdadeira questão: Queremos um capitalismo no qual o Estado é ingerente, com uma burocracia permeada por influências partidárias e mais sujeita à corrupção, ou preferimos um capitalismo no qual o papel do Estado permanecerá básico, mas valorizará a liberdade empresarial, o controle público das decisões e a capacidade de gestão?”, escreve FHC, voltando a cunhar uma expressão que tem sido muito recorrente em seu discurso: “capitalismo de Estado”.
A crítica ao tal “capitalismo de Estado” – termo empregado por FHC para se referir à maior participação estatal na economia durante o governo Lula – é uma crítica aos próprios avanços obtidos pelo projeto de governo do PT e de Lula. Deve-se perceber que o Brasil saiu praticamente ileso da grande crise do capitalismo mundial graças sobretudo à um Estado atuante, de maior participação na economia. E o ex-sociólogo não gosta disso: ele defende um Estado que ele próprio denomina de “básico”. O que é o Estado “básico” senão um “Estado Mínimo” com roupagem nova? A embalagem pode ser outra, mas o conteúdo é o mesmo e todos os brasileiros conhecem os efeitos desastrosos desse conteúdo.
Como dito no início deste texto, é natural que o ex-presidente faça uma defesa política do seu governo: mas seria minimamente interessante que FHC não cedesse ao discurso demagógico que ele tanto critica e tratasse as questões políticas nacionais com a seriedade que elas merecem. Afinal de contas, cada vez mais o ex-presidente, que coleciona obras e títulos acadêmicos, se afasta do papel de sábio e se aproxima do papel de idiota.

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