segunda-feira, 24 de maio de 2010

Como a política interna permitiu a política externa brasileira

Publicado no viomundo.com.br

17 de maio de 2010 às 22:57

Como a política interna permitiu a política externa brasileira

por Marco Aurélio Garcia, no livro Brasil, entre o Passado e o Futuro
Do site da Fundação Perseu Abramo
O lugar que um país pode ocupar no mundo é duplamente determinado. De um lado, estão condicionantes econômicas, sociais, políticas e culturais internas. De outro, a correlação de forças internacional.
Por mais constrangimentos que esses fatores possam exercer – e sabemos que não são poucos –, sempre haverá espaço, maior ou menor, para modificar seu curso. Afinal a política, incluindo a política externa, é essencialmente construção histórica coletiva, por certo condicionada, mas não mera expressão de supostas “determinações objetivas”, como se a “objetividade” não fosse também obra da ação humana.
Em 2002, o Brasil e o mundo viviam um momento de transição. Nessas circunstâncias, a eleição de Lula representou, ao mesmo tempo, um voto de protesto e um sinal de esperança. Por meio dela, a sociedade brasileira buscava realizar a experiência sem precedentes de ser governada à esquerda.
Ainda que a mudança se anunciasse como moderada, conforme preconizava a “Carta aos Brasileiros”, a pesada herança conjuntural e estrutural recebida impunha um conjunto de transformações profundas. Sem elas, não só seriam frustradas as expectativas e esperanças de milhões de homens e de mulheres como havia o sério risco de o país mergulhar em profunda e irreversível crise, da qual surgiam sinais evidentes.
O governo Lula foi iniciado no mesmo momento em que o governo dos Estados Unidos preparava a insensata aventura no Oriente Médio. Em dezembro de 2002, antes de sua posse, Lula constatou nas conversações mantidas no salão oval da Casa Branca a obsessão de George W. Bush de atacar o Iraque. Ao replicar ao presidente norte-americano que sua guerra seria “contra a fome e a pobreza”, Lula não só se dissociava dos planos de Bush como anunciava uma agenda distinta que tanto no plano interno quanto no externo marcaria seu governo.
A Guerra do Iraque e seus trágicos desdobramentos ulteriores, contra a qual o presidente brasileiro se mobilizou intensamente no plano internacional nas primeiras semanas de seu governo, deu mais um sinal de que a hegemonia norte-americana no mundo começava a ser questionada. Foi sintomática a resistência que a política dos Estados Unidos sofreu naquela conjuntura. Não só da parte de grandes potências – França, Alemanha, Rússia, China – como também do Chile e do México, que se recusaram, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a dar o aval ao ataque.
Não por acaso o tema do multilateralismo voltou a ocupar lugar de destaque no debate internacional.
Pouco mais de uma década antes, os Estados Unidos apareciam aos olhos do mundo como única e indiscutível potência global. Haviam derrotado, pacificamente, a União Soviética e, militarmente, o Iraque. Sua economia vicejava. O ideário do Consenso de Washington oferecia parâmetros para os cinco continentes.
É verdade que as sucessivas crises dos anos 1990 – em que o México, o Sudeste Asiático e a Rússia foram muito atingidos – enviavam sinais alarmantes sobre uma globalização financeira dominada pela desregulamentação dos mercados. Mas também é certo que esses sinais não foram suficientemente fortes para convencer governantes de que as ameaças viriam a se materializar dramaticamente em 2008.
O único sinal mais preocupante para a hegemonia norte-americana no mundo era o crescimento espetacular da China e as evidentes implicações que esse fato teria, a médio prazo, para o equilíbrio internacional de forças.
ACIMA DAS SANDÁLIAS
Por que o Brasil passou a ocupar um novo e relevante lugar no mundo, em um espaço de tempo inferior a uma década?
Por que passou a ser convidado às reuniões do G8, a integrar o G20 financeiro e o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China, grupo de países emergentes), além de estar na origem do G20 da Organização Mundial do Comércio (OMC), que mudou a lógica das negociações comerciais no mundo?
Por que a grande imprensa mundial passou a tratar o país de forma elogiosa nas páginas de economia e política, quando antes o Brasil aparecia, quase exclusivamente, no noticiário esportivo ou policial?
Não podem ser excluídas a personalidade carismática do presidente nem a qualidade da diplomacia brasileira, fatores que contribuíram para a  projeção que o país passou a ter no mundo.
Tampouco deverão ser descartadas as diretrizes de política externa que, sob a inspiração direta de Lula, o Itamaraty implementou com competência.
Há que buscar outro elemento, no entanto, sem o qual o Brasil não poderia estar no lugar que hoje ocupa no cenário internacional. Esse elemento está diretamente ligado às transformações internas pelas quais o país passou nos dois governos de Lula.
No século XX, o Brasil em cinco décadas, sobretudo entre os anos 1930 e 1980, experimentou um crescimento econômico acelerado – 6,7% de média anual –, algo semelhante ao desempenho da economia chinesa nos últimos 20 anos.
Esse crescimento, que projetou o país entre as oito maiores economias do mundo, foi acompanhado, no entanto, de uma concentração de renda extraordinária, que situou o Brasil entre os países mais desiguais do planeta.
A desigualdade não só se expressava nos números frios das estatísticas econômicas e sociais como aparecia nas diferenças entre o Centro-Sul rico e o Norte-Nordeste, pobre ou miserável, ou mesmo no interior das grandes metrópoles do Sudeste. Estava presente na discriminação contra a população negra e a indígena, ou mesmo contra as mulheres, uma prática não sancionada institucionalmente, mas parte dos “usos e costumes” nacionais. Manifestava-se, finalmente, na concentração de conhecimento em um país que podia exibir, lado a lado, a excelência de suas universidades e dezenas de milhões de analfabetos.
Apresentada como sociedade “dual”, a “Belíndia” brasileira (mistura de Bélgica com Índia) apareceu aos olhos de alguns – aí incluindo um ex-presidente – como um país incapaz de integrar ao menos 1/3 de sua população, condenada a permanecer à margem do “novo Renascimento” supostamente em curso no mundo.
Faltava entender que tal fenômeno, apresentado como dualismo da economia e da sociedade brasileira, menos que acidente histórico ou até anomalia conceitual, era a consequência de uma estratégia vitoriosa dos donos do poder, que sempre haviam logrado “modernizar” o país sem realizar reformas, conservando as estruturas passadas. A incapacidade de derrotar esse projeto perverso punha a nu a incapacidade das forças políticas, empenhadas na mudança, de construir um projeto de transformação que fosse além da retórica e conseguisse articular um novo bloco social para enfrentar os grandes desafios nacionais.
A experiência desses 50 anos da história republicana demonstrava, além de um crescimento acompanhado de forte concentração de renda, uma recorrente instabilidade macroeconômica, forte vulnerabilidade externa e pronunciado déficit democrático. Mais da metade dos 55 anos que separam 1930 de 1985 passaram-se sob regime de exceção. E, mesmo nos intervalos democráticos desse período, persistiu uma democracia mitigada.
Era difícil imaginar como o Brasil, eternamente apresentado como “país do futuro”, com tamanho lastro, poderia aspirar a um lugar mais importante no mundo, correspondente a seu potencial.
Desde 2003, no espaço de sete anos, foram enfrentados com êxito grandes problemas da sociedade brasileira e atingiram-se resultados como o crescimento com distribuição de renda, permitindo forte inclusão social, o equilíbrio macroeconômico, dando sustentabilidade ao desenvolvimento, e a redução da vulnerabilidade externa, protegendo o país das crises internacionais. Tudo isso no marco do alargamento e do aprofundamento democrático.
Não procede, portanto, o raciocínio cético de alguns, segundo o qual a projeção que o Brasil alcançou no mundo de hoje é efêmera, simples reiteração de situações passadas, a exemplo daquela vivida durante o “milagre econômico” nos tempos do regime militar.
Desde os anos 1980 – a década perdida –, o país confrontou duas agendas: a de um desenvolvimentismo superado, pois instável no plano macroeconômico, socialmente excludente e, não raro, politicamente autoritário, e a neoliberal, celebrada urbi et orbi pelos supostos êxitos colhidos no Reino Unido de Margaret Thatcher ou no Chile de Augusto Pinochet.
A força do ideário conservador viu-se agigantada a partir do colapso do “socialismo real” na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e na Europa do Leste, dos descaminhos da social-democracia na Europa ocidental ou mesmo dos impasses do nacional-desenvolvimentismo no então chamado “Terceiro Mundo”.
A opção pela agenda conservadora, simbolizada pela eleição de Collor de Mello e, posteriormente, de Fernando Henrique Cardoso (FHC), significou dar prioridade ao equilíbrio fiscal sobre o desenvolvimento, que se manteve nulo ou instável. Significou também não enfrentar a exclusão social, aprofundar a vulnerabilidade externa e levar adiante o desmantelamento do Estado. O controle da inflação – logrado no final do governo Itamar Franco e nos primeiros anos da administração FHC – não foi capaz de resolver os desafios clássicos de nossa economia e sociedade. Foi obtido à custa de uma política cambial desastrosa, de um processo de privatizações que torrou cerca de 100 bilhões de dólares e de uma política fiscal que comprometeu a capacidade de planejamento estratégico do Estado. Sua debilidade apareceu na crise do apagão elétrico ou no abandono a que foram relegadas nossas universidades, apenas para citar dois exemplos de uma série de outros.
Um elemento mais grave a destacar: a política macroeconômica da época não foi sequer capaz de lograr os efeitos estabilizadores que anotava como sua prioridade. Foi o que se viu por ocasião da crise russa em setembro de 1998, ou na (maxi) desvalorização do real “pelo mercado” (sic!) em janeiro de 1999 ou, finalmente, nas fortes pressões inflacionárias que se manifestaram em 2002.
Acompanhando essa agenda econômica de “uma nota só”, nossa política externa sofria de autolimitações evidentes. Às vésperas de deixar as funções de ministro das Relações Exteriores, o embaixador Luiz Felipe Lampreia afirmava sem inibições: “O Brasil tem um papel adequado a seu tamanho. O Brasil não pode querer ser mais do que é, mesmo porque tem uma série de limitações, a principal das quais é seu déficit social”.
Esse “complexo de vira-lata”, retomando a expressão usada por Nelson Rodrigues para identificar um sentimento de subalternidade que perpassa setores da elite brasileira, ainda hoje pode ser detectado entre “observadores” da política externa – alguns ex-diplomatas – sempre que o Brasil assume maiores responsabilidades no cenário internacional, subindo, para empregar a expressão de um ex-embaixador, “acima de suas sandálias”.
A retomada do crescimento com forte distribuição de renda – a volta do desenvolvimento –, o controle da inflação, a redução da relação dívida interna/PIB, os êxitos do comércio exterior, a passagem da condição de devedor à de credor internacional e, sobretudo, os grandes avanços no combate à pobreza e à exclusão social criaram condições para uma política externa mais “ativa e altiva”, para empregar a expressão do chanceler Celso Amorim.
A política externa do governo Lula não ficou, porém, à espera de que esses resultados econômicos e sociais se materializassem.
Definiu desde o início suas prioridades, estabelecendo uma nova articulação entre o “externo” e o “interno”. Soube entender que o interesse nacional não pode existir separado da posição que o país busca ocupar em um mundo assimétrico e complexo, como aquele em que vivemos hoje.
Houve o entendimento de que a política externa não poderia ser apenas um instrumento de projeção dos interesses nacionais no cenário internacional, mas que nossa inserção no mundo, sobretudo na região, teria uma incidência decisiva sobre nosso projeto nacional de desenvolvimento. Seria um de seus elementos constitutivos.
A OPÇÃO SUL-AMERICANA
A partir de 2003, a prioridade número um da política externa foi uma forte aproximação com os 12 países que integram a América do Sul, dez dos quais fazem fronteira com o Brasil.
O primeiro instrumento para a realização de uma política sul-americana foi o Mercado Comum do Sul (Mercosul), à época integrado pela Argentina, pelo Brasil, pelo Paraguai e pelo Uruguai, tendo o Chile e a Bolívia como países associados.
Já era difundida e aceita a tese de que o Mercosul deveria ir além de uma associação puramente comercial, para avançar em outras dimensões, especialmente na da integração produtiva.
Para tanto, duas dificuldades precisavam ser enfrentadas.
A primeira era a de que a própria integração comercial não se completara. O Mercosul pretendia ser uma União Aduaneira, mas ainda estava longe disso. A segunda dificuldade, talvez a maior delas, estava ligada ao fato de que, sendo uma União Aduaneira, ainda que imperfeita, perdia capacidade de atração sobre outros países da região que permaneciam céticos ou haviam feito distintas opções em matéria comercial. Era o caso da Comunidade Andina (Can), da Comunidade do Caribe (Caricom) ou do Chile, que estavam empenhados em firmar tratados de livre-comércio com os Estados Unidos e outros países desenvolvidos. Os desdobramentos da situação sul-americana, desde aquela época, só vieram a aprofundar essa heterogeneidade de regimes comerciais.
De qualquer maneira, mesmo vivendo dificuldades internas, o Mercosul foi capaz de atrair para a condição de associados todos os países da América do Sul e ainda outros, como o México e Cuba, além de estabelecer acordos com países de fora da América Latina.
Dessa associação mais ampla surgiu a ideia de fundar a Comunidade Sul-Americana de Nações, proposta pelo Brasil, mais tarde denominada União das Nações Sul-Americanas (Unasul).
Ela surgia de uma dupla e contraditória constatação. A América do Sul possuía e possui trunfos extraordinários para uma inserção competitiva no mundo de hoje. Porém, seu nível atual de integração dificultava a realização dessa vocação.
Estão entre os trunfos da região o seu potencial energético – o maior do mundo, considerando sua produção e reservas de petróleo e gás – e a sua capacidade em energia hidroelétrica, eólica e na área dos biocombustíveis. A região possui não só um terço das reservas de água do planeta como uma extraordinária biodiversidade, até agora pouco explorada. A isso se somam as riquezas do continente em recursos minerais e sua capacidade de produção de alimentos, itens que serão cada vez mais procurados no mundo.
Zona de paz, beneficiada por incomum situação de estabilidade política, todos os países têm governos constituídos por meio de eleições democráticas, com extensa participação da sociedade. Mesmo aqueles países que podem dar a impressão de estar vivendo instabilidade estão passando, em realidade, por processos de ajuste institucional, necessários sempre que o espaço público se amplia e as estruturas governamentais passadas não são capazes de dar conta do ingresso de novos personagens na cena política.
Com escassos contenciosos de fronteira – solucionáveis por via diplomática –, a América do Sul enfrenta como seu principal desafio a resolução das desigualdades sociais que ainda marcam todos os seus países. No entanto, as políticas seguidas em praticamente toda a região mostram a adoção de orientações econômicas e sociais que contribuem, em maior ou menor medida, para a redução da pobreza e da desigualdade. O êxito dessas políticas – do qual o Brasil é um exemplo concreto, mas não único – contribuirá para dar à região uma vantagem suplementar. Seus mais de 350 milhões de habitantes estão gradativamente constituindo um gigantesco mercado de consumo que poderá transformar-se – como ocorreu no caso brasileiro – em extraordinário fator de crescimento econômico e de estabilidade social.
Entretanto existem sérios obstáculos à integração, como o baixo índice de conexão física, energética, produtiva e financeira.
O êxito da Unasul está diretamente ligado à sua capacidade de articular enormes recursos energéticos, colocando-os à disposição de todos os países da região. Da mesma forma, é imperioso construir estradas, pontes, portos, aeroportos e outras obras viárias que favoreçam a aproximação não só das economias locais, mas de seus homens e mulheres. Isso permitirá ligar os dois oceanos, interiorizar o desenvolvimento, integrar os sistemas produtivos, bem como fortalecer uma cidadania e uma cultura regionais.
O Brasil compreendeu que somente por intermédio do comércio não se resolvem os problemas da construção de uma América do Sul integrada, justa e democrática. Ao contrário, a integração comercial pode, nas circunstâncias atuais, agravar as assimetrias entre países mais desenvolvidos e de economia maiscomplexa e diversificada, como o Brasil e a Argentina, de um lado, e os demais, de outro.
Além da integração física e energética, é necessário construir instrumentos de integração produtiva que permitam a todos os países da região agregar valor a seus produtos naturais, garantir sua segurança alimentar, dispor de capacidade de investimento, sem que tenham de se sujeitar aos constrangimentos que a maioria das instituições financeiras internacionais estabeleceu até hoje.
Daí por que ganham importância instrumentos como os fundos para o desenvolvimento, os acordos comerciais em moedas nacionais e, particularmente, o Banco do Sul, recentemente criado.
É evidente que, para alcançar essas metas de integração e, mais tarde, para consolidá-las, são necessárias instituições que, respeitando a soberania nacional de cada país-membro, sejam capazes de fortalecer a solidariedade decorrente de uma integração com crescente conteúdo supranacional, porém, ao mesmo tempo, isenta de pretensões hegemônicas.
Para levar adiante políticas sociais integradas, assim como para combater a criminalidade transnacional, em especial o narcotráfico, da mesma forma que para assegurar uma política de defesa comum, são necessárias iniciativas que proporcionem eficácia ao processo de integração.
Entre muitos exemplos a serem resgatados estão o combate ao narcotráfico e a reconstituição dos mecanismos de defesa dos países da região. De um lado, a experiência de muitos países da América do Sul – a Bolívia, por exemplo – demonstra que a assistência de agências extrarregionais no combate ao narcotráfico, além de ineficaz, envolve com frequência descabida ingerência em assuntos internos do país, muitos dos quais sem nenhuma ligação com o enfrentamento da criminalidade. Daí a decisão de criar um Conselho Sul-Americano de Combate ao Narcotráfico.
De outro lado, a percepção de que não há efetiva política de integração regional sem uma política própria de defesa, o que levou os países da Unasul a criar o Conselho Sul-Americano de Defesa, cujo propósito é, em primeiro lugar, contribuir para a construção de uma doutrina de defesa própria da região. Ao mesmo tempo em que respeita a soberania nacional dos países-membros, essa doutrina não inclui temas alheios à nossa problemática regional. Deve também desenvolver instrumentos capazes de fortalecer a confiança entre os países da região por meio do exercício da transparência na troca de informações sobre estratégias e práticas de defesa e opções em termos de armamento, além de propiciar o intercâmbio de pessoal e estabelecer bases para uma indústria militar regional.
O processo de integração sul-americana exige consistência e rapidez, tendo em vista o momento de transição que o planeta vive, de um mundo unipolar para um mundo multipolar. A América do Sul pode constituir-se em um dos polos dessa nova configuração geopolítica internacional.
Ao mesmo tempo, a existência de um organismo regional como a Unasul pode contribuir para restabelecer a paz e o equilíbrio institucional em países eventualmente confrontados com graves crises internas. Passados poucos meses de sua criação, a Unasul foi fundamental para encontrar uma solução pacífica para o conflito que ameaçava a própria integridade territorial da Bolívia.
Os processos de integração apresentam enorme complexidade, como ilustra a experiência europeia. No caso da América do Sul, como foi em parte mencionado anteriormente, esse processo apresenta uma dificuldade particular: o enorme descompasso territorial, populacional e econômico entre o Brasil e seus vizinhos.
Essa assimetria tem profundas implicações para as iniciativas diplomáticas do Brasil na região. No passado, outros ensaios de integração não prosperaram, porque o tema das assimetrias, mesmo que formalmente reconhecido, não era efetivamente levado em conta.
O fato de ser maior impõe ao Brasil maiores responsabilidades. Por ter compreendido e assumido essas responsabilidades diferenciadas é que o governo brasileiro se portou adequadamente em seus relacionamentos com a Bolívia, quanto à questão do gás, ou com o Paraguai, a respeito do uso da energia elétrica, para citar dois episódios com grande repercussão e alvos da incompreensão e da oposição de alguns.
O governo Lula herdou do regime militar o acordo com o Paraguai sobre a Hidroelétrica Binacional de Itaipu e do governo FHC o gasoduto com a Bolívia. A decisão dos militares de construir Itaipu em associação com o Paraguai, arcando o governo brasileiro com a totalidade dos custos, mais que uma opção de política energética, teve clara significação geopolítica. De acordo com a lógica daqueles tempos, a finalidade era atrair o Paraguai, isolando a Argentina. A resolução dos impasses daí decorrentes exigia uma saída política, muito mais do que uma solução técnica. Com esse espírito, o presidente Lula chegou aos recentes acordos com o novo governo paraguaio.
Nos anos 1990, a decisão do governo FHC de tornar o Brasil dependente do gás boliviano foi, no mínimo, arriscada, tendo em vista a instabilidade que a Bolívia vivia naquele momento, estendida até os primeiros anos do século XXI.
Nos dois casos, o governo Lula atuou movido pela necessidade de garantir a segurança energética do país. Mas sua atitude esteve também informada por questões de princípios. A Bolívia tinha direito à propriedade de seus recursos naturais, como o Brasil o tem e exerce. O governo Evo Morales pagou pela nacionalização das instalações da Petrobras, contrariamente ao que tantas vezes a oposição e parte da imprensa propalaram. O presidente Lula teve compreensão sobre a simbologia que as demandas bolivianas e paraguaias apresentavam nos dois países. Elas apareciam como instrumentos de coesão social e política, capazes de alimentar projetos de desenvolvimento nacional que os libertassem da situação de países dependentes de um só produto. Pela mesma razão, o Brasil também tem se empenhado na diversificação da economia desses e de outros países da região, com o objetivo de reduzir assimetrias e dependências.
Não deixa de ser sintomático que muitos dos que criticaram a suposta “tibieza” da diplomacia brasileira para com a Bolívia e o Paraguai – não raro com argumentos racistas, ou querendo ver preferências ideológicas – tenham sido, no passado, os mesmos que pregaram e praticaram a mais absoluta subserviência em relação às grandes potências. As preferências ideológicas eram outras.
O Brasil fez uma opção clara. Não quer ser um país próspero em meio a um conjunto de países pobres e desesperançados quanto a seu futuro. A altivez não é incompatível com a solidariedade.
E a solidariedade também serve ao interesse nacional, que muitos invocam sem efetivamente compreender o que venha a ser.
Quando o interesse nacional esteve efetivamente em jogo – nas negociações para o estabelecimento de uma Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) –, a posição do Brasil, em consonância com o Mercosul, se fez sentir sem ambiguidades, com a determinação que as circunstâncias exigiam naquele momento.
O não dado à proposta da Alca na cúpula de Mar Del Plata foi a expressão maior de defesa do interesse nacional.
A opção sul-americana é parte – a mais imediata e lógica – de uma estratégia de fortalecimento dos laços do Brasil com o Sul do mundo.
Uns poucos têm tentado ver nessa estratégia uma “recaída terceiro-mundista”, dando a esse qualificativo sentido pejorativo.
A expressão “Terceiro Mundo” aludia, à época de seu surgimento, a um fenômeno político extremamente importante. A partir da Conferência de Bandung, em 1955, um grupo de líderes de países que não se alinhavam com os Estados Unidos e seus aliados, nem com a União Soviética e seus associados, buscou construir uma alternativa à bipolaridade que sufocava a política mundial naqueles tempos de guerra fria.
O “terceiro-mundismo” é impensável sem o extraordinário movimento de descolonização da África e da Ásia nos anos 1950-1960. Refletia a expectativa de regimes então chamados de “intermediários” de construir uma opção distinta dos imperialismos ocidentais e do autoritarismo burocrático da URSS.
Não por acaso, as tentativas de construir no Brasil uma política externa independente, nos anos 1960, durante o governo Jânio Quadros e o governo João Goulart, cuja influência na diplomacia brasileira transcendeu aquela breve conjuntura, foram muito nutridas de ideias provenientes da percepção do fenômeno do “Terceiro Mundo”.
Hoje, passadas muitas décadas daquela relevante experiência internacional, nos marcos de uma reorganização política e econômica do planeta, ganha de novo importância a relação Sul-Sul como fator constitutivo de uma nova correlação de forças internacional, ainda que as circunstâncias históricas tenham se modificado radicalmente.
A emergência da China e da Índia faz da Ásia um novo polo de desenvolvimento no mundo. A Rússia tenta superar a crise provocada pela desagregação da União Soviética e começa lentamente a reocupar o papel que a URSS havia perdido a partir dos acontecimentos de 1989-1991. Nos últimos anos, ainda que em forma muito desigual, assiste-se ao renascimento do continente africano.
Todos esses movimentos não poderiam passar despercebidos ao governo brasileiro na (re)orientação de sua política externa.
A inflexão em direção à África, criticada por uns poucos como irrelevante, correspondia à percepção brasileira dessa emergência de novos atores. Tinha também um significado particular.
O Brasil, com mais de 50% de sua população autodeclarada como negra ou parda, situava-se, depois da Nigéria, como a segunda nação de afrodescendentes no mundo.
As visitas de Lula a 21 países daquele continente têm uma justificativa adicional. Celebram a contribuição dos africanos para a construção da nação brasileira. Sublinham a ideia de que a paz e o desenvolvimento no mundo só poderão ser alcançados com a eliminação dos bolsões de pobreza e desigualdade, em grande parte concentrados na África. As ações internacionais de Lula contra a fome e a pobreza destinavam-se essencialmente ao continente africano.
Na esteira dessa ofensiva diplomática, registrou-se não só um considerável incremento do comércio, mas também a crescente presença de empresas brasileiras na África. Agências governamentais como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) abriram escritórios em Acra e Maputo. A primeira encarregou-se de realizar pesquisas para renovar a agricultura africana, e a segunda, de contribuir para o combate a epidemias e pandemias, como a do HIV.
A expressão mais significativa dessa opção Sul-Sul foi o estabelecimento do acordo entre a Índia, o Brasil e a África do Sul (Ibas), reunindo três grandes democracias multiétnicas situadas em três grandes continentes do mundo emergente.
O fortalecimento das relações com a República Popular da China, que se transformou no primeiro parceiro comercial do Brasil, e a participação no Bric, que reúne também a Índia e Rússia, correspondem a profundas mudanças que começaram a ser produzidas na cena mundial, reforçando a ideia de multipolaridade.
As iniciativas e a intensa participação do Brasil em foros, como América do Sul-Países Árabes e América do Sul-Países Africanos, também fortalecem os nexos Sul-Sul indispensáveis neste período de reconfiguração econômica e política do mundo.
MULTILATERALISMO, MULTIPOLARIDADE E NOVA GOVERNANÇA MUNDIAL
O fortalecimento do multilateralismo como princípio reitor das relações internacionais e a tendência à configuração de um sistema mundial multipolar põem em evidência a necessidade de novos mecanismos de governança global para enfrentar as grandes questões atuais: a paz e a segurança coletiva, a democratização das relações internacionais, a construção de uma nova ordem econômica e financeira e a preservação do clima e do meio ambiente.
Passados mais de 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo continua dominado por práticas e instituições surgidas na esteira daquele grande conflito. A correlação de forças atual, em muito distinta da do imediato pós-guerra, não se expressa nas instituições globais de hoje.
Muitas décadas após 1945, surgiram novas geografias econômicas e políticas. Países derrotados e arrasados pela guerra, como o Japão e a Alemanha, transformaram-se em grandes potências econômicas. A Europa cicatrizou as feridas da guerra civil de 50 anos que sobre ela se abateu, tornando-se um gigantesco polo econômico e político. A União Soviética, que emergiu como grande potência no pós-guerra, desintegrou-se. A Ásia transformou-se em motor da economia mundial e projeta potências econômicas, políticas e militares, como a China e a Índia. A África, apesar dos sinais positivos que vem emitindo nos últimos anos, e também o mundo árabe sofrem ainda os efeitos de séculos de dominação colonial.
Nessa conjuntura, a democratização da América Latina e os avanços econômicos e sociais dos últimos anos, ainda que lentos e desiguais, apontam para nova e promissora realidade. Hoje, é difícil tratar a região como simples quintal (el patio trasero) dos Estados Unidos – a exemplo do que ocorria no passado.
Todas essas transformações, aqui anotadas de forma sumária e superficial, reforçam a necessidade de uma mudança importante nas instituições mundiais, sobretudo quando a humanidade se vê confrontada com ameaças imediatas, como os efeitos atuais da crise, ou até mesmo com outros problemas não muito longínquos, como os relacionados com a mudança climática.
A Organização das Nações Unidas sofreu um evidente processo de desgaste. Foi inibida durante longo período pelos efeitos do condomínio Estados Unidos-URSS. Foi ainda mais relegada durante o período em que os Estados Unidos reinaram de modo unilateral.
A Assembleia Geral da ONU perdeu poder, servindo mais de espaço de exercício retórico do que de efetiva instância decisória. O Conselho de Segurança revelou-se igualmente incapaz de atuar de forma eficiente em situações de gravidade, como a crise iraquiana ou o conflito na Palestina, uma zona de instabilidade que se irradia por todo o Oriente Médio e ameaça a paz mundial.
A demanda brasileira – somada à de outros países – de um lugar permanente no Conselho de Segurança expressa a preocupação de amplos setores da comunidade internacional de dar a esse órgão uma representatividade – e legitimidade – que hoje ele não tem.
Foi essa crise nos mecanismos de governo mundial que levou à criação do G7, mais tarde transformado em G8, após a incorporação da Rússia.
Mas, por pouco andar, esse organismo ad hoc de governança também perdeu sua força. A percepção, ainda que tardia, dessa debilidade levou os governantes mundiais a convidar outros países – ditos “emergentes” – para participar de sucessivas reuniões depois de 2003.
Nas duas últimas – no Japão e na Itália –, essa participação se fez mais orgânica. Ao G8 acrescentou-se o G5 (integrado pela África do Sul, pelo Brasil, pela China, pela Índia e pelo México) com uma presença mais forte no debate sobre as grandes questões mundiais.
Em setembro de 2008, com a eclosão da grave crise econômica e financeira, os mecanismos de governança internacional existentes até então foram sacudidos.
O Grupo dos 20 (G20) era, a princípio, uma instância de caráter essencialmente técnico, integrada formalmente por ministros de Economia e presidentes de Bancos Centrais, que, na prática, era frequentado por funcionários de segundo escalão. Ele foi transformado em foro prioritário de resolução dos graves problemas que afetam, faz algum tempo, a economia internacional e se tornaram recentemente uma ameaça capaz de deixá-la em colapso.
A participação de países como a África do Sul, a Argentina, a Austrália, a China, a Coreia, a Índia, a Indonésia e o México, ao lado do Brasil, no G20 reflete a nova geografi a econômica e política mundial que se foi forjando nos últimos anos. Expressa, assim, uma mudança na correlação de forças internacional.
O G20 tem na sua pauta questões cruciais a serem discutidas e resolvidas. A primeira, e mais complexa, é pôr fim à anarquia dos mercados financeiros que conduziu o mundo à beira do abismo. A extensa pauta de questões substantivas envolve o estabelecimento de mecanismo de regulação, o fim dos paraísos fiscais, o combate ao protecionismo e medidas capazes de irrigar a economia mundial, permitindo o restabelecimento do crédito.
Com isso, busca-se reverter a depressão atual e evitar uma recessão duradoura.  Países como o Brasil têm defendido a proteção do emprego e dos setores mais desvalidos da sociedade, que são as primeiras vítimas da crise.
No entanto, o G20 será confrontado com questões mais complexas, de difícil mas inelutável resolução. Elas estão ligadas às profundas contradições que atravessam hoje o sistema monetário internacional, já que o dólar perde sua condição de única moeda de referência internacional.
Ao lado desses e de outros problemas substantivos, existem aqueles relacionados com a obsolescência das instituições criadas em Bretton Woods. Sua origem liga-se aos momentos finais da Segunda Guerra, quando um grupo importante de países se reuniu naquela cidade dos Estados Unidos para desenhar uma nova ordem econômica e financeira internacional, que, mesmo tardiamente, prevenisse a humanidade de novos colapsos, como o de 1929, cujos efeitos se fizeram sentir na eclosão de uma imensa tragédia.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird), então criados, destinavam-se a formatar novas relações econômicas e financeiras internacionais. A Organização Mundial do Comércio (OMC), que também deveria ter sido criada naquela época – mas somente veio a ser instituída décadas depois –, teria como objetivo a regulação das trocas comerciais em escala planetária.
Retrospectivamente, é possível comprovar o fracasso das instituições de Bretton Woods. O Fundo exerceu uma tutela desastrosa sobre os países pobres e em desenvolvimento. Suas orientações (verdadeiros diktats) estiveram na origem de várias catástrofes econômicas em muitos países nestas últimas décadas.
Quando se tratou de supervisionar as economias dos países desenvolvidos, sua atuação não foi menos infeliz. Revelou não ser capaz de diagnosticar a crise iminente e, menos ainda, de preveni-la.
Por essa razão, o FMI tem de enfrentar hoje uma dupla tarefa. Em primeiro lugar, mudar seus parâmetros teóricos e políticos e assumir efetivamente as funções de regulação da economia mundial, desenvolvendo mecanismos para preservá-la de novas catástrofes, como a atual. Para tanto, é fundamental a melhoria de sua representatividade, bem como a possibilidade de países até agora relegados a um patamar subalterno em sua direção, como no caso do Banco Mundial, poderem influir de modo mais eficaz em seus destinos. Ainda que restritos, os êxitos alcançados na reunião do G20 em Pittsburg sobre essa matéria demonstram que houve, ao menos, o reconhecimento dessa nova realidade em curso no mundo.
O processo de articulação dos países em desenvolvimento já havia sido antecipado faz alguns anos no âmbito na OMC. A organização do G20 comercial imprimiu novo rumo às negociações da Rodada de Doha, antes entregue exclusivamente a um restrito grupo de países ricos.
VELHAS E NOVAS AMEAÇAS
Desde o lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em agosto de 1945, passando pelo período do equilíbrio nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética até chegar-se à fase de proliferação atômica, a humanidade viveu sob a ameaça da destruição total.
O desequilíbrio nas negociações internacionais, que privilegiou a não proliferação em detrimento do desarmamento, pode estar mudando agora, quando os Estados Unidos e a Rússia decidiram reduzir seus arsenais nucleares.
O Brasil e a América Latina enfrentam essa discussão com absoluta serenidade. O país e o continente fazem parte de uma zona desnuclearizada. O Brasil consagrou em sua Constituição a proibição de produzir e usar armas nucleares.
Construiu com a Argentina – tida no passado como principal ameaça militar – uma agência de cooperação nuclear sem precedentes no mundo.
Assim, sobra ao Brasil autoridade política e moral para defender uma forte e rápida política de desarmamento, cujo avanço se tem dado até agora a passos extremamente lentos.
Os últimos anos puseram em evidência uma nova hipoteca que, tão assustadora quanto a ameaça nuclear, pesa sobre a humanidade – a mudança do clima.
Estas notas, escritas antes da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, em dezembro de 2009, em Copenhague, não podem evidentemente prever os resultados desse importante encontro. Nada impede, no entanto, de registrar as linhas gerais da posição brasileira que abordam os grandes temas em jogo.
Não é necessário insistir no fato de que os temas relativos à mudança do clima ocuparão crescentemente lugar central nas relações internacionais.
Sua relevância é maior em razão dos problemas suscitados pela crise econômica mundial, que exigirão acelerar a adoção de novos padrões de produção e de consumo para a humanidade.
O enfrentamento global das questões relacionadas à mudança do clima deverá dar-se a partir do princípio de que as nações têm responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
Não se pode pedir aos países em desenvolvimento os mesmos sacrifícios a serem feitos por economias desenvolvidas. Os países que realizaram sua revolução industrial há mais de 200 anos, destruíram suas florestas e poluíram o meio ambiente de forma continuada.
Em nome de uma economia de baixo teor de carbono, pode-se solicitar ao Brasil que abandone a exploração da camada pré-sal ou renuncie a um programa como o Luz para Todos, que forneceu energia elétrica para 10 milhões de brasileiros, antes vivendo à luz de lampiões ou de velas?
Com 45% de sua matriz energética renovável (enquanto os outros países do mundo somam 12%), o Brasil ocupa um lugar de destaque na preservação do meio ambiente. Sua vulnerabilidade maior decorreu dos altos índices de desmatamento do passado, fenômeno que vem sendo corrigido nos últimos anos. Em 2008, o desmatamento caiu 30% e a determinação governamental é de reduzi-lo em 70% até 2017, e em 80%, até 2020.
A isso se somam o programa de reflorestamento de terras degradadas e a participação crescente dos biocombustíveis na matriz energética nacional, estando sua produção submetida a estritas regras de zoneamento agroecológico, social e de respeito à segurança alimentar.
A defesa de nossas reservas naturais – em especial a Amazônia – não se pode fazer em detrimento do bem-estar dos 20 milhões de homens e mulheres que aí vivem. A Amazônia, que o Brasil comparte com tantos outros países da América do Sul, não é um jardim botânico a ser frequentado por turistas e organizações não governamentais (ONGs) estrangeiras, menos ainda uma região incapaz de assegurar sua proteção, algum protetorado de países ricos. Se eles estão realmente preocupados com a mudança climática, sua função é propiciar recursos e tecnologia necessários para que os países em desenvolvimento possam construir novos padrões produtivos. A compra de créditos de carbono por parte de países desenvolvidos não pode servir de escusa para que eles não assumam suas responsabilidades em matéria de produção e de consumo.
UMA POLÍTICA EXTERNA DE PRINCÍPIOS
Parte integrante da cantilena conservadora em relação à política externa do atual governo é a tese de que o governo Lula não pratica uma “política de Estado”, mas, sim, uma “política de partido”.
Como se não bastasse o assessor de Política Externa ser homem de partido, o próprio chanceler Celso Amorim filiou-se ao Partidos dos Trabalhadores (PT). Isso é o que dizem sem pestanejar alguns doutos críticos. Parecem esquecer a filiação do ex-chanceler Fernando Henrique ao Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), a alta plumagem tucana do ex-ministro Celso Lafer (tesoureiro da campanha eleitoral de FHC), o pertencimento de Olavo Setúbal ao Partido Popular (PP) ou as notórias ligações partidárias do também ex-ministro Abreu Sodré, para não alongar a lista nem fazer comparação com outros países.
Em qualquer governo sempre existe algum viés partidário.
A  implementação de políticas de Estado não é  um mero exercício técnico. O interesse nacional é interpretado pelo partido ou pela coligação partidária que a sociedade conduziu à direção do Estado.
A sociedade tem ao alcance das mãos os instrumentos institucionais de controle do governo. Cabe à oposição valer-se deles sempre que considerar oportuno e tiver força para fazê-lo.
O fato de o governo Lula ser um governo de esquerda não o exime de ter princípios. Ao contrário, torna esses princípios mais imperativos.
Não serão, evidentemente, os mesmos princípios de governos anteriores, para os quais a defesa do interesse nacional devia ser comedida, especialmente se ela afetasse os interesses de grandes potências. O Brasil não podia “subir acima de suas sandálias”…
O fato de ter princípios e de defender os interesses do país não impediu – ao contrário – o governo Lula de manter excelentes relações com os Estados Unidos e com os países da União Europeia. Sabendo-se respeitar, o Brasil foi respeitado.
Se ele respeitou e até mesmo valorizou experiências políticas em curso em vários países da América do Sul, foi porque nelas avistou – a despeito das diferenças que as separam da experiência brasileira – oportunidades excepcionais de construção nacional, de ampliação da justiça social e de renovação institucional, essenciais para a convivência democrática, harmônica e solidária das nações.
Desde fins do século XIX, a humanidade enfrentou graves perturbações econômicas, que transcenderam o espaço nacional e se irradiaram por um vasto conjunto de países, transformando-se em crises globais.
Além de seus desdobramentos econômicos, sociais e, muitas vezes, políticos, essas crises trouxeram à tona problemas de fundo, aspectos pouco visíveis das sociedades por elas afetadas, explicitando mazelas até então despercebidas aos olhos da maioria dos governantes e dos analistas.
Muitas dessas crises, sobretudo as mais radicais, além de seu impacto imediato, ensejaram mudanças relevantes, sobretudo quando encontraram forças sociais e dirigentes capazes de imprimir outro curso ao processo histórico.
Esse foi o caso do crack de 1929, que mergulhou o Brasil e toda a América do Sul em grave depressão. O colapso de 1929, ao mesmo tempo que revelava as mazelas de nosso modelo primário-exportador, criou as condições para sua superação, impulsionando a industrialização do Brasil.
Crises mais recentes – como a mexicana (1995), a asiática (1997) e a russa (1998) – expuseram a economia brasileira a graves constrangimentos. O impacto causado nessas três conjunturas, especialmente a de 1998, explica-se, centralmente, pelo desacerto das políticas seguidas pelos governos de turno, que não foram capazes de construir defesas sólidas contra ameaças visíveis.
O enfrentamento vitorioso de crises mundiais por parte de governos nacionais – como ocorreu em boa medida nos anos 1930 – deu-se por meio da aplicação de políticas econômicas contracíclicas que permitiram a recuperação da economia e, não raro, a abertura de um longo ciclo de crescimento.
No caso brasileiro, a percepção de que o país vivia um momento de transição fez seu governo adotar com anterioridade políticas contracíclicas, que tiveram um efeito fortemente dissuasivo sobre a crise.
Os dois exemplos mais visíveis são as políticas sociais implementadas desde 2003 e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a partir de 2006.
As políticas sociais – que não se reduzem ao Bolsa Família – contribuíram para a construção de um grande mercado de bens de consumo de massas que, pelo estímulo da demanda, permitiu que a roda da economia não se detivesse.
Já o PAC – bem mais que um conjunto de obras – transformou-se em um elemento fundamental para a retomada do desenvolvimento sustentável, interrompido há mais de duas décadas.
A partir dessas duas grandes iniciativas, criaram-se todas as condições para definir um novo projeto nacional de desenvolvimento. Ele não será o resultado de puros exercícios teóricos, como tantas vezes no passado, mas estará fundado no êxito de importantes iniciativas de caráter estruturante, desenvolvidas nestes últimos anos.
A reação da economia brasileira diante da crise demonstrou que a globalização não é um processo unilateral, uma espécie de atmosfera perversa que sufoca sem apelação economias nacionais, deixando-as sem alternativas próprias, como procurou fazer crer o pensamento neoconservador há pouco tempo.
Da mesma forma que o Brasil preparou a transição de sua economia, de sua organização social e de suas instituições para níveis superiores, é fundamental à política externa debruçar-se sobre a cena mundial, para entender o momento de transição que se vive. Somente assim será capaz de estabelecer um conjunto de ações que, aproveitando o acúmulo de forças até agora realizado, contribua para que o mundo que visualizamos como possível se transforme em nova e promissora realidade.

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