Matéria da Editoria:
Economia
11/09/2010
Economia
11/09/2010
Concentração de renda é causa da crise nos EUA e Europa
Muito se tem escrito sobre os fatores que nos levaram à crise econômica mais importante que atingiu os Estados Unidos e muitos países da União Européia desde a Grande Depressão do início do século XX. Mas pouco se tem dito sobre uma das principais raízes de tal crise, a saber, a enorme concentração de renda em ambos os lados do Atlântico, conseqüência, em grande parte, da aplicação das políticas neoliberais desenvolvidas pela maioria de governos da OCDE (o clube de países mais ricos do mundo) desde os anos oitenta. O artigo é de Vicenç Navarro.
Vicenç Navarro (*)
Data: 10/09/2010
A revolução neoliberal iniciada pelo presidente Reagan nos EUA e por Thatcher na Inglaterra criou, com a aplicação de suas políticas (diminuição dos impostos dos mais ricos, aumento da regressividade fiscal, flexibilização dos direitos sociais e trabalhistas com o propósito de enfraquecer os sindicatos e a força de trabalho, diminuição do gasto público), um enorme crescimento das rendas superiores a custa das rendas médias e inferiores. Em outras palavras, as rendas do capital dispararam a custa das rendas do trabalho, que diminuíram. Ou seja, em linguagem clara, os ricos ficaram super ricos a custa de todos os demais (classe trabalhadora e classes médias). E aí está a raiz do problema, a realidade mais escondida e silenciada em nossos meios de comunicação.
Olhemos para os dados e analisemos os números do país onde a crise iniciou: os Estados Unidos. Segundo o ex-ministro do Trabalho (no governo Clinton), Robert Reich, no artigo How to end the Great Recession (The New York Times, 03/09/2010), o salário médio do homem trabalhador (ajustado à inflação) naquele país é mais baixo hoje do que há 30 anos. Esta queda forçou as famílias estadunidenses – para manter sei nível de vida - a ter mais integrantes da família trabalhando, sendo essa uma das principais causas de integração da mulher ao mercado de trabalho. Em 1970, apenas 32% das mulheres com filhos trabalhavam; hoje esse índice é de 60%. Outra maneira de compensar a perda de salários foi aumentar as horas de trabalho. O trabalhador, nesta década, está trabalhando 100 horas a mais por ano (e as trabalhadoras 200 horas a mais) do que ocorria há 20 anos.
No entanto, mesmo com essas mudanças, o poder aquisitivo das famílias caiu, empurrando-as para o endividamento. As famílias estadunidenses se endividaram até a medula, e puderam fazer isso porque o aval de suas dívidas, suas casas, ia subindo de preço. Até que a bolha estourou. E agora as famílias têm uma dívida enorme de nada menos que 2,3 bilhões de dólares.
Até aqui fizemos uma descrição do que ocorreu com a maioria da população. Vejamos agora o que se passou com os ricos. O fato de que a massa salarial (a soma dos salários) foi caindo como porcentagem da renda nacional (apesar do aumento do número de trabalhadores) quer dizer que as rendas do capital iam subindo. Isso significa que o crescimento da riqueza do país (o que se chama de crescimento do PIB) beneficiava muito mais as rendas superiores (que derivam sua renda, em geral, da propriedade) do que o resto da população (que extrai sua renda do trabalho). Como conseqüência, os ricos ficaram super ricos. O 1% da população que possuía 9% da renda nacional nos anos setenta do século XX, passou a possuir 23,5% da renda total, o mesmo percentual verificado no início da Grande Depressão, no início do século XX. E aí está o problema. Como diz Robert Reich, os super ricos têm tanto dinheiro que consomem um percentual menor de sua renda em comparação ao que consome o cidadão normal. Ou seja, os 23,5% da renda nacional que controlam são utilizados menos no consumo em comparação à renda das pessoas comuns. A demanda total, que é a que move a economia (pois estimula a criação de empregos e o crescimento econômico) caiu dramaticamente, em parte porque a maioria das famílias perdeu grande capacidade de consumo e os super ricos retiraram do consumo 23,5% da renda total do país, consumindo muito menos do que o cidadão médio.
Como se tudo isso não fosse suficiente, a situação se agravou ainda mais pelo fato de os super ricos depositarem seu dinheiro em paraísos fiscais e/ou investirem em atividades especulativas que têm elevada rentabilidade, como os famosos hedge funds, movimento facilitado pela desregulação dos mercados financeiros. Aí está a raiz da crise financeira e do colapso do sistema bancário, que acabou sendo salvo por fundos públicos, ou seja, impostos, procedentes das famílias profundamente endividadas.
A solução é simples. É preciso implementar uma redistribuição das rendas de modo que o 1% da população volte a ter 9% da renda nacional (na verdade, 3% já seriam suficientes). Assim, o consumo aumentaria e, com ele, o estímulo econômico e a criação de emprego. Além disso, as intervenções redistributivas do Estado gerariam mais recursos públicos, com os quais se poderia, inclusive, criar mais emprego, resolvendo o maior problema que temos hoje, que é o elevado desemprego. Mas os super ricos, junto com os ricos e as classes médias de renda alta (cerca de 20% da população) opõem-se por todos os meios a estas políticas redistributivas. Isso ocorre nos EUA (como o atestamos enormes problemas enfrentados pelo governo Obama em sua tentativa de tributar as rendas mais elevadas e de criar empregos públicos) e também nos países do sul da União Européia, incluindo a Espanha. Estes países têm as maiores taxas de desigualdade de renda da UE, o que explica que sejam também os mais afetados pela crise. Na Espanha, o governo socialista nem se atreve a aumentar os impostos dos super ricos. Isso mostra que a causa da crise é política: a excessiva concentração de poder do poder econômico e político em nossas democracias.
(*) Vicenç Navarro é catedrático de Políticas Públicas da Universidade Pompeu Fabra e professor de Política Pública na John’s Hopkins University. Publicado originalmente na seção de Opinião do jornal “Público”, de Madri.
Tradução: Katarina Peixoto
Olhemos para os dados e analisemos os números do país onde a crise iniciou: os Estados Unidos. Segundo o ex-ministro do Trabalho (no governo Clinton), Robert Reich, no artigo How to end the Great Recession (The New York Times, 03/09/2010), o salário médio do homem trabalhador (ajustado à inflação) naquele país é mais baixo hoje do que há 30 anos. Esta queda forçou as famílias estadunidenses – para manter sei nível de vida - a ter mais integrantes da família trabalhando, sendo essa uma das principais causas de integração da mulher ao mercado de trabalho. Em 1970, apenas 32% das mulheres com filhos trabalhavam; hoje esse índice é de 60%. Outra maneira de compensar a perda de salários foi aumentar as horas de trabalho. O trabalhador, nesta década, está trabalhando 100 horas a mais por ano (e as trabalhadoras 200 horas a mais) do que ocorria há 20 anos.
No entanto, mesmo com essas mudanças, o poder aquisitivo das famílias caiu, empurrando-as para o endividamento. As famílias estadunidenses se endividaram até a medula, e puderam fazer isso porque o aval de suas dívidas, suas casas, ia subindo de preço. Até que a bolha estourou. E agora as famílias têm uma dívida enorme de nada menos que 2,3 bilhões de dólares.
Até aqui fizemos uma descrição do que ocorreu com a maioria da população. Vejamos agora o que se passou com os ricos. O fato de que a massa salarial (a soma dos salários) foi caindo como porcentagem da renda nacional (apesar do aumento do número de trabalhadores) quer dizer que as rendas do capital iam subindo. Isso significa que o crescimento da riqueza do país (o que se chama de crescimento do PIB) beneficiava muito mais as rendas superiores (que derivam sua renda, em geral, da propriedade) do que o resto da população (que extrai sua renda do trabalho). Como conseqüência, os ricos ficaram super ricos. O 1% da população que possuía 9% da renda nacional nos anos setenta do século XX, passou a possuir 23,5% da renda total, o mesmo percentual verificado no início da Grande Depressão, no início do século XX. E aí está o problema. Como diz Robert Reich, os super ricos têm tanto dinheiro que consomem um percentual menor de sua renda em comparação ao que consome o cidadão normal. Ou seja, os 23,5% da renda nacional que controlam são utilizados menos no consumo em comparação à renda das pessoas comuns. A demanda total, que é a que move a economia (pois estimula a criação de empregos e o crescimento econômico) caiu dramaticamente, em parte porque a maioria das famílias perdeu grande capacidade de consumo e os super ricos retiraram do consumo 23,5% da renda total do país, consumindo muito menos do que o cidadão médio.
Como se tudo isso não fosse suficiente, a situação se agravou ainda mais pelo fato de os super ricos depositarem seu dinheiro em paraísos fiscais e/ou investirem em atividades especulativas que têm elevada rentabilidade, como os famosos hedge funds, movimento facilitado pela desregulação dos mercados financeiros. Aí está a raiz da crise financeira e do colapso do sistema bancário, que acabou sendo salvo por fundos públicos, ou seja, impostos, procedentes das famílias profundamente endividadas.
A solução é simples. É preciso implementar uma redistribuição das rendas de modo que o 1% da população volte a ter 9% da renda nacional (na verdade, 3% já seriam suficientes). Assim, o consumo aumentaria e, com ele, o estímulo econômico e a criação de emprego. Além disso, as intervenções redistributivas do Estado gerariam mais recursos públicos, com os quais se poderia, inclusive, criar mais emprego, resolvendo o maior problema que temos hoje, que é o elevado desemprego. Mas os super ricos, junto com os ricos e as classes médias de renda alta (cerca de 20% da população) opõem-se por todos os meios a estas políticas redistributivas. Isso ocorre nos EUA (como o atestamos enormes problemas enfrentados pelo governo Obama em sua tentativa de tributar as rendas mais elevadas e de criar empregos públicos) e também nos países do sul da União Européia, incluindo a Espanha. Estes países têm as maiores taxas de desigualdade de renda da UE, o que explica que sejam também os mais afetados pela crise. Na Espanha, o governo socialista nem se atreve a aumentar os impostos dos super ricos. Isso mostra que a causa da crise é política: a excessiva concentração de poder do poder econômico e político em nossas democracias.
(*) Vicenç Navarro é catedrático de Políticas Públicas da Universidade Pompeu Fabra e professor de Política Pública na John’s Hopkins University. Publicado originalmente na seção de Opinião do jornal “Público”, de Madri.
Tradução: Katarina Peixoto
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