Matéria da Editoria:
Internacional
28/08/2010
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28/08/2010
"Prendam Carmem e Esmeralda!"
Os ciganos representam uma das comunidades mais inofensivas e pacíficas do mundo, e seus ideais figuram na bandeira que adotaram em 1971: azul em cima (o céu do país que os recebe), verde abaixo (o território em que pisam), e uma roda no meio, que simboliza o nome de seu hino: "Guedem, guedem" (andai, andai). Por sua fragilidade material e política, os povos ciganos têm sido o bode expiatório perfeito do racismo e do neofascismo que os governantes da União Européia encarnam, hoje, como Silvio Berlusconi e Nicolas Sarkozy.
José Steinsleger - La Jornada
Data: 26/08/2010
Para o governo da França (país berço dos direitos do cidadão e do racismo científico), o errar pelo mundo sem emprego fixo dos ciganos (ou povo rom) equivale, uma vez mais, a se levar a liberdade demasiado a sério. Mas os ciganos começaram a perambular (e não pela própria vontade) quando a França não existia como nação.
Sem uma cultura escrita que tenha esclarecido suas origens com precisão, os povos rom têm mil anos carregando de um lado para outro suas tralhas, e com o que mais lhe pesa: o clima de medos e preconceitos que todas as sociedades, religiões, culturas e regimes políticos têm deles guardado.
Os historiadores consagrados apenas os nomearam. No estudo inquietante do mundo mediterrâneo na época de Felipe II (1800 páginas), Fernando Braudel lhes dedica, em pé de página, uma só linha em que diz: “...do trato dado aos ciganos espanhóis enviados às galeras, não por causa de um delito, mas por causa da necessidade de que houvesse pessoas para remar”.
De acordo com os preconceitos da época, Cervantes narrou a história de um amor entre Preciosa e um jovem da nobreza que decide comprar a criança, raptada e criada por uma velha cigana cheia de malícia. E Shakespeare, mais indulgente, introduziu os ciganos em cinco de suas obras: Caliban, Como Gostais, Romeu e Julieta, Antônio e Cleopatra e Otelo.
No início do século XIX, quando no bairro Sacromonte, em Granada, os ciganos andaluzes começaram a difundir a arte flamenca ou ciganoandaluz que vinham aperfeiçoando desde o século XV, produziu-se um sobressalto. Fusão da voz com a guitarra e o corpo que, anós depois, consagrariam o par de mulheres mais famosas da cultura cigana: Esmeralda e Carmem, mulheres lendárias.
Esmeralda (Victor Hugo, Nossa Senhora de Paris, 1831) e Carmem (Prosper Merimée, 1845), foram algo mais que simples personagens lendárias na literatura romântica. Foram uma explosão: a revelação do que as mulheres almejavam para si, faiscando engenho, sempre se rendendo os homens e à vida que, acima de tudo, amam a liberdade.
Sem uma cultura escrita que tenha esclarecido suas origens com precisão, os povos rom têm mil anos carregando de um lado para outro suas tralhas, e com o que mais lhe pesa: o clima de medos e preconceitos que todas as sociedades, religiões, culturas e regimes políticos têm deles guardado.
Os historiadores consagrados apenas os nomearam. No estudo inquietante do mundo mediterrâneo na época de Felipe II (1800 páginas), Fernando Braudel lhes dedica, em pé de página, uma só linha em que diz: “...do trato dado aos ciganos espanhóis enviados às galeras, não por causa de um delito, mas por causa da necessidade de que houvesse pessoas para remar”.
De acordo com os preconceitos da época, Cervantes narrou a história de um amor entre Preciosa e um jovem da nobreza que decide comprar a criança, raptada e criada por uma velha cigana cheia de malícia. E Shakespeare, mais indulgente, introduziu os ciganos em cinco de suas obras: Caliban, Como Gostais, Romeu e Julieta, Antônio e Cleopatra e Otelo.
No início do século XIX, quando no bairro Sacromonte, em Granada, os ciganos andaluzes começaram a difundir a arte flamenca ou ciganoandaluz que vinham aperfeiçoando desde o século XV, produziu-se um sobressalto. Fusão da voz com a guitarra e o corpo que, anós depois, consagrariam o par de mulheres mais famosas da cultura cigana: Esmeralda e Carmem, mulheres lendárias.
Esmeralda (Victor Hugo, Nossa Senhora de Paris, 1831) e Carmem (Prosper Merimée, 1845), foram algo mais que simples personagens lendárias na literatura romântica. Foram uma explosão: a revelação do que as mulheres almejavam para si, faiscando engenho, sempre se rendendo os homens e à vida que, acima de tudo, amam a liberdade.
Sensualidade recôndita
Santa Joana intuiu em seu favorito e estranho poema Primeiro sonho, e que a gramática masculina da Real Academia castigou com a definição de ciganada ou ciganear: enganos com os quais só se pode conseguir o que se deseja.
No fundo, o desejo de liberdade que José Martí entendeu assim: “Deixam na memória os ciganos as cores de um sonho brilhante...Como que persegue o cigano sem consciência um ideal que não há de encontrar jamais” (Entre flamencos, 1883).
Em El amor brujo (ballet, 1925), e Bodas de sangre (teatro, 1933), os andaluzes Manuel de Falla e Federico García Lorca sublimaram a tragédia dos ciganos. Tia Añica la Piñaraca, famosa cantora andaluz, dizia, de sua arte: quando canto com gosto, sai sangue de minha boca.
Temidos, expulsos, explorados, escravizados, marginalizados, dispersos pelo mundo, os povos rom souberam conservar sua cultura e uma férrea tradição de hábitos e costumes que, para sobreviver, não podiam senão serem muito conservadores.
Apesar das duríssimas condições de vida, os ciganos deram ao mundo personagens famosos: atores (Charles Chaplin, Yul Brynner, Michael Caine); guitarristas de jazz, rock e flamenco (Django Reinhardt, Ron Wood, Camarón de la Isla, Tomatito), bailarinas (Carmen Anaya); baladistas (Sandro, Diego el Cigala), Augusto Krogh (premio Nobel de Medicina, 1920). Até Bill Clinton se jacta de ser sobrinho tataraneto de Charles Blythe, rei dos ciganos da Escocia (1847)!
Alguns estudiosos associam o povo cigano com o povo judeu. No entanto, os ciganos não se regem por livros sagrados, não reclamam territórios, não defendem o nacionalismo e tampouco formaram grandes grupos financeiros.
Os ciganos representam uma das comunidades mais inofensivas e pacíficas do mundo, e seus ideais figuram na bandeira que adotaram em 1971: azul em cima (o céu do país que os recebe), verde abaixo (o território em que pisam), e uma roda no meio, que simboliza o nome de seu hino: Guedem, guedem (andai, andai).
Por sua fragilidade material e política, os povos rom tem sido o bode expiatório perfeito do racismo e do neofascismo que os governantes da União Européia encarnam, hoje, como Silvio Berlusconi e Nicolas Sarkozy. Ou personagens como a inglesa Viviane Reding, que preside a Comissão para Justiça e os Direitos Fundamentais dos Cidadãos Europeus (sic).
Em abril passado a senhora Redign qualificou de inaceitáveis as discriminações sofridas por essa minoria étnica (que não se dignou a nomear). Depois (muito british, ela), retificou, dizendo que não estava a favor nem contra as propostas francesas. Ou seja, a expulsão dos ciganos do país da tolerância.
Nada de novo. Os reis Luis XII (1504), Francisco I (1538) e Carlos IX (1560) expulsaram os ciganos da França, e no início da Segunda Guerra Mundial o regime de Vichy seguiu com a tradição. Prendeu 30 mil ciganos e entregou 15 mil aos nazis que acabaram nos fornos dos crematórios.
(*) John Steinsleger é jornalista e escritor argentino e tem uma coluna no La Jornada
Tradução: Katarina Peixoto
Santa Joana intuiu em seu favorito e estranho poema Primeiro sonho, e que a gramática masculina da Real Academia castigou com a definição de ciganada ou ciganear: enganos com os quais só se pode conseguir o que se deseja.
No fundo, o desejo de liberdade que José Martí entendeu assim: “Deixam na memória os ciganos as cores de um sonho brilhante...Como que persegue o cigano sem consciência um ideal que não há de encontrar jamais” (Entre flamencos, 1883).
Em El amor brujo (ballet, 1925), e Bodas de sangre (teatro, 1933), os andaluzes Manuel de Falla e Federico García Lorca sublimaram a tragédia dos ciganos. Tia Añica la Piñaraca, famosa cantora andaluz, dizia, de sua arte: quando canto com gosto, sai sangue de minha boca.
Temidos, expulsos, explorados, escravizados, marginalizados, dispersos pelo mundo, os povos rom souberam conservar sua cultura e uma férrea tradição de hábitos e costumes que, para sobreviver, não podiam senão serem muito conservadores.
Apesar das duríssimas condições de vida, os ciganos deram ao mundo personagens famosos: atores (Charles Chaplin, Yul Brynner, Michael Caine); guitarristas de jazz, rock e flamenco (Django Reinhardt, Ron Wood, Camarón de la Isla, Tomatito), bailarinas (Carmen Anaya); baladistas (Sandro, Diego el Cigala), Augusto Krogh (premio Nobel de Medicina, 1920). Até Bill Clinton se jacta de ser sobrinho tataraneto de Charles Blythe, rei dos ciganos da Escocia (1847)!
Alguns estudiosos associam o povo cigano com o povo judeu. No entanto, os ciganos não se regem por livros sagrados, não reclamam territórios, não defendem o nacionalismo e tampouco formaram grandes grupos financeiros.
Os ciganos representam uma das comunidades mais inofensivas e pacíficas do mundo, e seus ideais figuram na bandeira que adotaram em 1971: azul em cima (o céu do país que os recebe), verde abaixo (o território em que pisam), e uma roda no meio, que simboliza o nome de seu hino: Guedem, guedem (andai, andai).
Por sua fragilidade material e política, os povos rom tem sido o bode expiatório perfeito do racismo e do neofascismo que os governantes da União Européia encarnam, hoje, como Silvio Berlusconi e Nicolas Sarkozy. Ou personagens como a inglesa Viviane Reding, que preside a Comissão para Justiça e os Direitos Fundamentais dos Cidadãos Europeus (sic).
Em abril passado a senhora Redign qualificou de inaceitáveis as discriminações sofridas por essa minoria étnica (que não se dignou a nomear). Depois (muito british, ela), retificou, dizendo que não estava a favor nem contra as propostas francesas. Ou seja, a expulsão dos ciganos do país da tolerância.
Nada de novo. Os reis Luis XII (1504), Francisco I (1538) e Carlos IX (1560) expulsaram os ciganos da França, e no início da Segunda Guerra Mundial o regime de Vichy seguiu com a tradição. Prendeu 30 mil ciganos e entregou 15 mil aos nazis que acabaram nos fornos dos crematórios.
(*) John Steinsleger é jornalista e escritor argentino e tem uma coluna no La Jornada
Tradução: Katarina Peixoto
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