|       01/04/2010 46 anos do golpe     militar  
 Por Caio Navarro de Toledo  
 Àquele/as que partiram sem poder     dizer adeus.  
 Há 46 anos – na data em que o imaginário     popular consagra como o “dia da mentira” – era rompida a legalidade     democrática instituída no país com a Constituição de 1946. Nestes dias,     apenas os falcões da ultradireita brasileira talvez se atreverão a lembrar     ou comemorar publicamente o 1º de abril de 1964; civis e militares que o     fizerem, em bizarros cenários, serão uma inexpressiva minoria. Hoje, a     quase totalidade das entidades que conspirou, apoiou e promoveu a derrubada     do governo democrático de João Goulart (1961-1964), não festejará o golpe     civil-militar de 1964. A este respeito, tome-se o exemplo dos grandes meios     de comunicação; nesta semana, ao contrário do que fizeram durante quase     duas décadas, deixarão eles de publicar editoriais e artigos que exaltarão     as “realizações” do regime militar.* A explicação é uma só: no Brasil     contemporâneo, todos se afirmam “amigos” ou amantes da democracia...   
 Diante da recorrente questão     “Golpe” ou “Revolução”, deveríamos lembrar as palavras de um ativo     protagonista do movimento de abril. Em celebrado depoimento (1981), Ernesto     Geisel declarou: “o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções     se fazem por uma ideia, em favor de uma doutrina”. Para o vitorioso de     1964, o movimento se fez “contra Goulart”, “contra a corrupção”, “contra a baderna     e a anarquia que destruíam o país”.   
 As palavras do militar golpista     – pertinentes, pois rejeitam a noção de “Revolução” para caracterizar o 1º.     de abril de 1964 –, no entanto, podem ser objeto de uma outra leitura.     Neste sentido, é possível – a partir de uma outra perspectiva teórica –     ressignificar todos os “contras” presentes no depoimento do ex-ditador.     Mais correto é então afirmar que 1964 representou: (a) um golpe contra a     incipiente democracia política brasileira; (b) um movimento contra as reformas     sociais e políticas e (c) uma ação repressiva contra a politização dos     trabalhadores e o promissor debate de idéias que, de norte a sul, ocorria     do país.   
 Em síntese, no pré-1964, as     classes dominantes e seus aparelhos ideológicos e repressivos – diante das     iniciativas e reivindicações dos trabalhadores no campo e na cidade e de     setores das camadas médias – apenas vislumbravam “crise de autoridade”,     “subversão da lei e da ordem”, “quebra da disciplina e hierarquia”     dentro das Forças Armadas e a “comunização” do país que, no limite,     implicariam a “dissolução da pátria e da família” e o “fim propriedade     privada”. Embora, por vezes, expressas numa retórica “radical” – reformas     na “lei ou na marra”, “forca aos gorilas!” etc. –, as demandas por reformas     sociais e as consignas políticas da época visavam, fundamentalmente, o     alargamento da democracia política e a realização de mudanças no     capitalismo brasileiro.  
 Contra algumas formulações     “revisionistas” – presentes no atual debate político e ideológico (inclusive     nos campos da literatura política e historiografia progressistas) –     que insinuam “tendências golpistas” por parte do governo Goulart, deve-se     enfatizar que quem planejou, articulou e desencadeou o golpe contra a     democracia política foi a alta hierarquia das Forças Armadas, incentivada e     respaldada pelo empresariado (industrial, rural, financeiro e investidores     estrangeiros) bem como por setores das classe médias brasileiras (as     chamadas “vivandeiras de quartel”). Sabe-se que desde 1961 – bem antes da     chamada “agitação” ou “subversão” das esquerdas” –, alguns desses setores     começaram a se organizar para inviabilizar o governo Goulart; a mobilização     pelas reformas sociais e políticas – apoiada pelo executivo – incentivou a     conspiração e amadureceu a decisão dos golpistas de decretar o fim do     regime democrático de 1946.   
 Destruindo as organizações     políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda e progressistas, o     golpe foi saudado pelas associações representativas do conjunto das classes     dominantes, pela alta cúpula da Igreja católica, pelos grandes meios de     comunicação etc. como uma autêntica “Revolução redentora”. Por sua vez, a     administração norte-americana de Lyndon Johnson (1963-1969) – que deixou de     concretizar o apoio material aos golpistas, como está comprovado     documentalmente –, congratulou-se com os militares e civis brasileiros pela     rapidez e eficácia da “ação revolucionária”. Para alívio do Pentágono, da     CIA, da Embaixada norte-americana etc, uma grandiosa e “nova Cuba” ao sul do     Equador tinha sido evitada!   
 Embora tivesse uma simpática     acolhida junto aos trabalhadores, às classes médias baixas e aos meios     sindicais, o governo João Goulart ruiu como um “castelo de areia”. Dois de     seus principais pilares de apoio – como apregoavam os setores nacionalistas     – mostraram ser autênticas “peças de ficção”. De um lado, o propalado     “dispositivo militar” que seria comandado pelos chamados “generais do     povo”; de outro, o chamado “quarto poder” que estaria representado pelo     Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). A rigor, ambos assistiram – sem     qualquer reação significativa ou eficaz – a queda inglória de um governo a     quem juravam fidelidade; inclusive, diziam os mais “radicais”, com o preço     da própria vida.  
 Desorganizadas e fragmentadas, as     entidades progressistas e de esquerda – muitas delas subordinadas ou     tuteladas pelo governo Goulart – não ofereceram qualquer resistência à ação     dos militares. Sabe-se que, às vésperas de abril, algumas lideranças de     esquerda afirmavam que os golpistas, caso atrevessem quebrar a ordem     constitucional, teriam as “cabeças cortadas”. Mostraram os duros fatos que     se tratava de uma cortante metáfora. Com a ação dos “vitoriosos de abril”,     a retórica, no entanto, tornou-se uma aguda e cruel realidade para muitos     homens e mulheres durante os longos e sombrios 20 anos da ditadura     militar.         
 46 anos depois, nada há, pois, a     comemorar. O golpe de 1964 foi um infausto acontecimento pois teve     conseqüências perversas e nefastas no processo de desenvolvimento econômico,     político e cultural do Brasil – que ainda se refletem nos tempos presentes.     Decorridos 46 anos do golpe, o conjunto da sociedade brasileira repudia a     data, mas os progressistas e socialistas não podem se satisfazer com a     derrota sofrida pelos golpistas no plano ideológico. Se os valores da     democracia atualmente são diuturnamente exaltado no debate político e     cultural, os progressistas e os socialistas não podem se calar diante do     fato de que o regime democrático vigente nos pós-1985 ainda não fez plena     justiça às vítimas da ditadura militar e ainda todos aguardamos que a     verdade sobre os fatos ocorridos entre 1964 e 1985 seja plenamente     conhecida. Sendo o “direito à justiça” e o “direito à verdade”     condições e dimensões relevantes de um regime democrático, não se pode     senão concluir que a democracia política no Brasil contemporâneo não é     ainda uma realidade sólida e consistente.   
 Caio N. de Toledo é professor colaborador da Unicamp. Autor de O governo     Goulart e o golpe de 1964, Editora Brasiliense e 1964: visões críticas do     golpe (org.), Editora Unicamp  
 * Após a combativa e intensa     campanha que sofreu dos setores democráticos e progressistas, por ter     utilizado, em editorial no ano anterior, a noção de “ditabranda”,     acredito que a Folha de S. Paulo não mais ousará praticar o estelionato     semântico que visou atenuar os efeitos da ditadura militar pós-1964.  
(publicado originalmente no     sítio da Fundação Perseu Abramo) 
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