terça-feira, 20 de julho de 2010

Bancos ganham muito mais com situação de conta negativa do cliente.



Colunista:
Paulo Kliass

19/07/2010

DEBATE ABERTO

Spread bancário: escândalo nacional

Quem costuma “entrar no vermelho” no final do mês, sabe que o gerente não se preocupa muito com a situação do cliente. Muito pelo contrário: o banco é remunerado na base de 160% anuais por cada real “negativo”. Qual outra operação no mercado financeiro rende à organização tal ganho?
Data: 13/07/2010
A condição duradoura e sustentada de nosso País, como o campeão mundial da taxa de juros há mais de uma década, não é a única característica a indicar a impunidade do sistema financeiro e a existência de grupos no interior da própria administração pública a defender os interesses da banca privada. A começar pelo Presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que construiu sua carreira profissional no setor e chegou à presidência internacional do conglomerado do Bank of Boston. Tudo isso antes de ter sido convidado, lá no início de 2003, para o posto que ocupa atualmente.

Em geral, ambientes onde predominam taxas de juros elevadas tendem a ser os mais interessantes para potencializar a rentabilidade de instituições bancárias e financeiras. Como um dos parâmetros mais importantes para as operações levadas a cabo por tais organizações é o chamado “custo do dinheiro”, quanto mais elevado for tal fator, maior tende a ser a taxa de retorno para as mesmas.

Dentre as funções clássicas dos bancos ao longo do capitalismo, situa-se a de intermediação de recursos, tornando viáveis as operações de crédito e empréstimo. Assim, eles captam recursos da sociedade e do mercado, em uma ponta, e retornam tais valores aos agentes (indivíduos e empresas) que necessitam de recursos e não os possuem na forma de liquidez imediata, na outra ponta do sistema. A origem da formação do lucro dos bancos, portanto, estaria na diferença entre: i) a taxa de remuneração que eles oferecem aos agentes que se dispõem a aplicar seus recursos nas distintas formas que as instituições financeiras oferecem; e ii) a taxa de juros que eles cobram dos tomadores de empréstimos e crédito, operações essas que são viabilizadas justamente com os recursos aplicados do item (i) e que passam a ficar temporariamente nas carteiras dos bancos.

Porém, com o processo de aprofundamento da financeirização da acumulação capitalista, observou-se o crescimento de funções cada vez mais complexas e específicas no mundo financeiro. A essas funções básicas do sistema bancário, acima referidas, foram sendo adicionadas outras como as operações com hipotecas (base da crise recente do sistema norte-americano), as operações de “leasing” e arrendamento mercantil, as operações de consórcio, o mercado de seguros, as operações nas bolsas de valores, as operações nas bolsas de mercadorias e de mercado futuro, as operações de câmbio com moedas estrangeiras, as operações de exportação e importação, as operações de previdência complementar e os fundos de pensão, dentre tantas outras. Como todos esses chamados “serviços” são, na verdade, negócios em que o objetivo é aumentar o ganho das instituições financeiras, suas fontes de lucros também foram sendo ampliadas, assim como foi crescendo a sua importância no dia-a-dia das empresas e dos indivíduos.

Mas, como diz o conhecido jargão do mercado financeiro, “banco é banco”. Ou seja, por mais que avancem os mecanismos complexos das operações financeiras, a instituição bancária ainda guarda suas origens na clássica função de intermediador de recursos. E com isso, um dos principais elementos utilizados para avaliação da performance do setor continua a ser o chamado “spread” bancário. O termo vem do inglês, sugerindo alguma analogia com a idéia de ampliar. Foi incorporado ao “financês” do mercado internacional justamente para identificar o diferencial entre as taxas que os bancos praticam em suas operações: aquela que eles utilizam para remunerar os depósitos e aquela que eles cobram dos tomadores de empréstimos. Como a própria língua explicita, a última é uma amplificação, uma ampliação da primeira. Essa é a base clássica da operação bancária: no limite, a diferença do quanto ele paga em relação ao muito que ele recebe.

No caso brasileiro, como alertamos desde o título do artigo, os níveis do spread praticado no mercado financeiro são um verdadeiro escândalo. Não se trata de uma novidade dos tempos de hoje, muito pelo contrário. Nos tempos da inflação elevada, havia uma maior dificuldade de sentir os efeitos do diferencial das taxas praticadas pelos bancos, inclusive pelo fato da perda de poder da moeda ser muito expressiva. Quem não estava em seu cotidiano envolvido com mensuração de inflação passada, inflação futura, taxas de juros e os índices diários para tais fenômenos, dificilmente conseguia se defender da redução do poder de compra de um volume de recursos considerado. Mas o spread já era bastante elevado e os bancos eram os maiores beneficiados pelo sistema que se habituava à alta inflação.

A questão é tão gritante que, recentemente, até mesmo a Federação dos Bancos (Febraban) e o Banco Central passaram a tentar tratar do assunto, buscando encontrar algum tipo de argumento que explicasse a aberração injustificável. Mas também o debate e a indignação obedecem a um movimento cíclico. Durante o primeiro mandato de Lula e ao longo do período de maior arrocho de crédito derivado da crise internacional atual, havia maior espaço para reclamação nos meios de comunicação. Mas, passada a marolinha e com a retomada da oferta de crédito, o espaço para crítica minguou, apesar dos níveis de spread praticado ainda serem absurdos.

Vamos a alguns números, obtidos nas páginas do próprio sistema. Escolhemos as taxas médias praticadas pelas instituições financeiras em algumas operações durante o primeiro semestre desse ano:

Crédito consignado - 2,03% ao mês - 31,3% ao ano
Veículos - 1,86% ao mês - 24,7% ao ano
Crédito pessoal - 3,03% ao mês - 43,1% ao ano
Crédito especial - 8,3% ao mês - 160,0% ao ano.


Aí em cima estão as taxas relativas à cobrança, o quanto os bancos recebem dos tomadores de empréstimo. Pelo lado da remuneração, os valores são muito menores. A caderneta de poupança, por exemplo, remunera na base de 6% ao ano, acrescida de uma pequena taxa definida pelo Banco Central. Quem já se preocupou em verificar a remuneração dos fundos de renda fixa oferecidos pelos bancos onde têm suas contas, achou índices que giram, em média, entre 8% e 10% ao ano.

Ora, captando a taxas tão reduzidas e cobrando as taxas mostradas lá em cima, dá para imaginar o nível de rentabilidade do sistema. Tanto mais quando se sabe que as operações de crédito consignado são típicas de assalariados (em geral, funcionários públicos) e aposentados/pensionistas – ou seja, oferecem risco praticamente igual a zero da chamada “inadimplência”. O crédito para compra de veículos ocorre numa operação casada, em que o veículo fica como garantia da operação. Caso haja interrupção do pagamento, o veículo “alienado” fica com a instituição que fornece o crédito. Quem já tentou fazer operação de empréstimo em banco sabe das inúmeras condições impostas para se obter o recurso e , não obstante, das altas taxas cobradas. E quem costuma “entrar no vermelho” no final do mês, sabe que o gerente não se preocupa muito com a situação do cliente. Muito pelo contrário: o banco é remunerado na base de 160% anuais por cada real “negativo”. Qual outra operação no mercado financeiro rende à organização tal ganho?

De acordo com os cálculos recentes divulgados pelo Banco Central a respeito do spread, observa-se uma leve redução nas operações com pessoa física (atualmente em torno de 30% ao ano) e uma tendência à manutenção das operações com pessoa jurídica no patamar de 17% ao ano. Na média do sistema, os níveis atuais são de 23% ao ano. Apesar de toda a crítica à metodologia, os valores são bastante elevados para qualquer tipo de comparação internacional e poderiam ser objeto de redução significativa.

Para tanto, bastaria o Banco Central assumir de forma efetiva a sua função de órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro, rompendo com a lógica de defender os interesses do sistema bancário e passar a defender os interesses do conjunto da sociedade na sua relação com tais instituições. As medidas são simples, mas falta vontade política para fazê-lo. Isso porque os interesses dos bancos são fortes, todos sabemos. Bastariam decisões da própria diretoria do BC e do Conselho Monetário Nacional, estabelecendo limites e prazos de adaptação dos bancos na sua prática de spread mais reduzidos junto aos clientes.

Por outro lado, o governo deveria utilizar o poder de pressão e de mercado das duas grandes instituições bancárias federais no mercado de varejo: o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF). Ao invés de jogá-los para fazer a concorrência seguindo as regras indecorosas dos bancos privados, a estratégia deveria ser exatamente a oposta. Recuperar o caráter público dos dois bancos estatais e começar a praticar taxas de juros com spread reduzido e tarifas bancárias menos escabrosas. Juntos, os dois representam 1/3 dos ativos do sistema financeiro. Além disso, tendo em vista a boa imagem das instituições junto ao mercado e à opinião pública de forma geral, tal comportamento certamente obrigaria a banca privada a reduzir suas margens para se manter competitiva e não perder sua fatia de mercado. Afinal qual a necessidade das duas estatais serem responsáveis por 1 em cada 4 reais de lucro do sistema financeiro?

O que mais impressiona é que um tema tão importante e sensível como esse esteja ainda quase ausente do debate das eleições de outubro. Com a palavra, candidatos e candidatas.

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