O significado da democracia
As conspirações contra as instituições e as demonstrações de insubordinação nos anos 1950 e 1960, além de frequentes, se alimentavam quase sempre do velho (e, no caso, paradoxal) argumento da defesa da legalidade constitucional e da democracia. Uma delas, inclusive, poria fim justamente à ordem legal e democrática que marcou o período pós-Estado Novo, iniciando um ciclo autoritário que perduraria por 21 anos, deixando graves sequelas das quais ainda hoje tentamos nos livrar. O artigo é de Douglas Attila Marcelino.
Douglas Attila Marcelino (*)
Durante os anos 1950 e 60, foram várias as ameaças ou tentativas de golpe militar que assolaram a sociedade brasileira. As conspirações contra as instituições e as demonstrações de insubordinação, além de frequentes, se alimentavam quase sempre do velho (e, no caso, paradoxal) argumento da defesa da legalidade constitucional e da democracia. Uma delas, inclusive, poria fim justamente à ordem legal e democrática que marcou o período pós-Estado Novo, iniciando um ciclo autoritário que perduraria por 21 anos, deixando graves sequelas das quais ainda hoje tentamos nos livrar.
Diversas foram as motivações de sublevações como a que ocorreu em 1964, sobretudo se considerarmos os elementos pontuais ou episódicos envolvidos em cada caso em particular. Outras causas, mais frequentes, apontam para o temor ao fortalecimento das mobilizações populares, para o medo do comunismo, do socialismo e outros “ismos” sempre indigestos aos setores conservadores (anarquismo, trabalhismo, populismo etc.). Isto, sem falar, é claro, nos fatores econômicos de mais longa duração que tanto chamaram a atenção de sociólogos e cientistas políticos nos anos 1970 e 1980 - os primeiros de fato a produzirem estudos mais sistemáticos sobre a ditadura, num período de forte predomínio acadêmico do marxismo (1).
Além desses aspectos, muito complexos para serem tratados aqui, dois traços da época parecem pouco percebidos: o ranço autoritário que marcava a cultura política brasileira (2), que pode ser visto na “elasticidade semântica” com que era utilizada a palavra democracia; e certa legitimidade moral de que gozavam os militares perante alguns segmentos da sociedade, que os percebiam como verdadeiros guardiões da ordem legal. Se tomarmos aqui quatro casos exemplares de golpes ou tentativas de mesmo teor nos anos 1950 e 60 - referentes aos anos de 1954, 1961, 1964 e 1968 - poderemos apontar como, pelo menos, um desses dois aspectos acabou perdendo seu vigor, enquanto o outro continua sendo um dos grandes desafios à consolidação da democracia no Brasil.
Comecemos pelo exemplo de agosto de 1954: tudo já parecia pronto para a deposição de Getúlio Vargas e, não fosse o suicídio do presidente, os setores militares e oposicionistas teriam tomado o poder argumentando a “defesa da ordem e das instituições democráticas”. Somente um gesto de tamanho significado simbólico (o suicídio do presidente) parece ter tido o potencial de modificar o quadro político de um Getúlio completamente acuado, vituperado constantemente pela imprensa que, desde o evento da rua Tonelero, acentuava suas críticas contra o “mar de lama” que assolaria o Palácio do Catete. O suicídio de Vargas, aliás, serve para demarcar como qualquer tentativa de manipulação da opinião pública acaba sendo limitada diante do simbolismo de determinados eventos: era impossível, aos grandes jornais que faziam oposição no período, não destacar o caráter impressionante e a grandiosidade das manifestações e da comoção popular geradas pela morte de Getúlio (até porque a morte do político gaúcho fortalecia mitos de grande apelo no imaginário nacional, como o do sacrifício pela libertação da pátria do jugo estrangeiro, amplificado no “lugar de memória” que se tornaria a carta-testamento) (3).
O ano de 1961 é igualmente exemplar: a inesperada renúncia do presidente que parecia, finalmente, ter conseguido alçar as forças conservadoras à chefia do Executivo pelo voto popular fez novamente ressurgirem as ameaças e suspeitas de golpe contra a democracia. O até hoje incompreensível gesto de Jânio Quadros, geralmente interpretado como uma patética tentativa de se perpetuar no poder, impulsionou mais uma tentativa militar de interromper o processo democrático a partir do impedimento da posse do vice-presidente João Goulart, que se encontrava numa viagem oficial à China. Desta vez, entretanto, o argumento pela defesa da ordem e da democracia contra a ameaça comunista (que Jango supostamente representaria) se mostrava forçado demais: a ênfase no respeito às instituições feita pela Rede da Legalidade (movimento liderado por Leonel Brizola, mobilizando o povo gaúcho a resistir às investidas contra a democracia) era, sem dúvida, mais crível e a solução encontrada, o regime parlamentarista, impediu o golpe por meio da limitação do poder presidencial.
1964: novamente o argumento da defesa da democracia e da legalidade seria utilizado em favor do rompimento da ordem constitucional, desta vez com êxito dos conspiradores e consequências mais profundas para o país. Naquele momento, a guinada do governo Jango em favor da aprovação das “reformas de base” e os boatos sobre suas possíveis manobras para manter-se no poder davam mais substância ao forçado argumento da legalidade e da democracia, fazendo com que os conspiradores militares gozassem de maior apoio de determinados segmentos, como parte das camadas médias urbanas (que produziram suas cruzadas contra o comunismo e o ateísmo nas autodenominadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade). O desfecho já sabemos: nada de uma rápida “intervenção saneadora” da vida pública, como se argumentava e foi usual até então, mas sim vinte e um anos de um violento regime que não respeitava direitos humanos dos mais elementares.
O argumento em defesa da democracia e da ordem legal seria novamente ouvido em 1968. O aumento significativo das manifestações contra a ditadura, materializado em eventos marcantes como a “marcha dos cem mil” e as passeatas e protestos estudantis, casava-se perfeitamente com os anseios daqueles que há tempos já apregoavam um fechamento ainda maior do regime (tudo, é claro, em favor da democracia). É difícil ponderar até que ponto 1968 representou realmente um golpe (o chamado “golpe dentro do golpe”), já que, no fundo, a data parece apontar mais uma acentuação das características autoritárias do regime político implantado em 1964. Aliás, é curioso notar que fórmula semelhante à expressão “golpe dentro do golpe”, recorrentemente utilizada para criticar a ditadura, foi empregada inicialmente por Costa e Silva, em seu primeiro pronunciamento após a decretação do Ato Institucional n. 5: “sempre que imprescindível, como agora, faremos novas revoluções dentro da Revolução”, diria o marechal num discurso feito durante a cerimônia de formatura de oficiais da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), no Rio de Janeiro. Na segunda quinzena de novembro de 1968, coronéis da ECEME já haviam redigido um documento conclamando Costa e Silva a comandar “uma revolução dentro da Revolução”.
As divergências entre os grupos militares, indicada pelo uso das expressões “linha dura” e “linha moderada” (empregadas inclusive para explicar a mudança de 1968, devido à vitória dos “duros”), portanto, não pode obscurecer a existência de aspectos comuns entre eles, como o desprezo pela democracia e o apego ao uso da força contra os adversários. O Ato Institucional n. 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, institucionalizava tudo isso, “legalizando” práticas autoritárias e dando ao presidente da República poderes para fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos, remover ou aposentar funcionários, entre outros atos de força contra setores oposicionistas.
De fato, os quatro casos mencionados servem para ilustrar aquilo que já destacamos sobre os traços autoritários que marcavam a cultura política brasileira na época e a crença de determinados setores no caráter “salvacionista” dos militares. No primeiro caso, o uso elástico do termo democracia, várias vezes empregado em favor do próprio rompimento das instituições democráticas, serve para exemplificar como aquele não representava ainda um valor realmente solidificado na sociedade brasileira (pelo menos, no sentido que pretendemos dar hoje à noção, quando as instituições democráticas parecem mais estabelecidas no país). Por outro lado, as sucessivas ameaças ou concretizações de golpes com participação de militares indicam certo messianismo atribuído à instituição que, desde a implantação da República, foi paulatinamente aumentando sua importância na sociedade brasileira, até assumir uma espécie de “papel moderador” após 1945 (em contraposição ao “papel desestabilizador” da Primeira República, segundo José Murilo de Carvalho) (4).
Para alguns segmentos sociais nos anos 1950 e 1960, os setores castrenses apareciam como símbolos de retidão moral, como reserva dos verdadeiros valores da nacionalidade e, por isso, aptos a intervir para salvar a República. Uma representação, diga-se de passagem, que os próprios membros da corporação quase sempre prezaram, considerando-se superiores aos civis, que, além de corruptíveis, seriam desapegados dos valores cívicos.
De todos os casos mencionados, o de 1968 é aquele que teve mais consequências para a reformulação de um dos traços que indicamos como marcantes da sociedade brasileira dos anos 1950 e 1960. O endurecimento da ditadura, que, no fundo, significava a opção pelo uso cada vez mais acintoso da força contra aqueles que se opunham ao regime, institucionalizando a tortura e a eliminação física dos opositores, demoraria apenas alguns anos a repercutir na opinião pública e macular a imagem límpida que alguns segmentos sociais ainda possuíam da corporação militar. Sem dúvida, esse processo não foi “total”, pois não é difícil encontrar, ainda hoje, algumas manifestações nostálgicas em relação ao período autoritário (tido como época da ordem e do pleno emprego, por exemplo). Ele também não foi automático ou simultâneo, já que os êxitos econômicos e a rígida censura do governo Médici ajudaram a escamotear a faceta autoritária do regime no início dos anos 1970, ao passo que o processo de “abertura política” do período Geisel seria realmente aquele que (apesar de suas ida e vindas) possibilitaria maior exposição das mazelas da ditadura.
Portanto, seria apenas a partir de meados dos anos 1970 que os casos mais graves de sevícias e maus-tratos contra presos políticos se tornariam mais conhecidos, o que não tira a importância da opção feita em 68 para a desconstrução da imagem positiva dos militares: muitas pessoas que viam com bons olhos o regime instaurado em 1964 passariam a reavaliar sua posição sobre o papel da corporação na política brasileira devido ao aumento da violência repressiva. Foi, de certo modo, o que aconteceu com parte dos setores médios da sociedade, que, depois de ajudar a promover as marchas da família contra o suposto comunismo de Jango e regozijar-se com o “milagre econômico”, acabou sendo sensibilizada quando a repressão bateu mais diretamente na sua porta (pense-se, por exemplo, no caso das “marchadeiras” que tiveram filhos ou parentes próximos levados a conhecer os “porões da ditadura”). Um exemplo ilustrativo nesse sentido e que tem mais importância por sua repercussão na opinião pública é o da mudança de postura da maioria dos grandes jornais: depois de apoiar e demandar a “revolução gloriosa de 1964”, muitos deles passariam, aos poucos, a empregar termos como golpe, ditadura e condenar o regime político comandado pelos militares.
A opção pela “ditadura escancarada” de 1968 (para usar a feliz expressão de Elio Gaspari) (5), portanto, trouxe maiores conseqüências à imagem dos militares, que parecem ter realmente perdido a batalha pela memória sobre o período dos anos 1960 e 1970. Mas, se certo estigma parece ter recaído sobre a corporação (a ponto de, hoje, a sociedade brasileira não saber muito bem o que esperar ou o qual o verdadeiro papel das Forças Armadas), resta ainda o outro desafio mencionado: o que permanece da cultura política autoritária que caracterizava a sociedade brasileira e que foi, de alguma forma, estimulada pelo regime militar? Quais os usos possíveis da palavra democracia hoje? Palavras, como sabemos, não têm significado por si mesmas, mas são dotadas de sentido a partir das relações estabelecidas dentro de um contexto que possibilita ou interdita determinados usos. Que significados a palavra democracia ainda pode comportar hoje em dia na sociedade brasileira?
(*) Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Subversivos e pornográficos: censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011 (no prelo).
NOTAS
(1) Ver FICO, Carlos. Além do golpe: visões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.
(2) Pela natureza deste texto, utilizo aqui de forma bastante livre o conceito de cultura política. Gostaria de ressaltar, entretanto, que tal uso não exclui a percepção da pluralidade e da complexidade das diferentes culturas políticas presentes na sociedade brasileira dos anos 1950 e 1960 (um aprofundamento nesse sentido inviabilizaria este artigo).
(3) Mesmo os jornais que faziam oposição a Vargas destacaram com detalhes as cenas impressionantes de manifestações populares que se seguiram ao suicídio. O periódico O Globo, por exemplo, que foi impedido de circular no dia 24 de agosto de 1954 devido aos ataques populares contra a sede do jornal, publicou na tarde do dia 25 uma das mais conhecidas imagens do enorme cortejo fúnebre de Getúlio Vargas (a imagem foi reproduzida na capa do jornal).
(4) CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
(5) GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Douglas Attila Marcelino (*)
Durante os anos 1950 e 60, foram várias as ameaças ou tentativas de golpe militar que assolaram a sociedade brasileira. As conspirações contra as instituições e as demonstrações de insubordinação, além de frequentes, se alimentavam quase sempre do velho (e, no caso, paradoxal) argumento da defesa da legalidade constitucional e da democracia. Uma delas, inclusive, poria fim justamente à ordem legal e democrática que marcou o período pós-Estado Novo, iniciando um ciclo autoritário que perduraria por 21 anos, deixando graves sequelas das quais ainda hoje tentamos nos livrar.
Diversas foram as motivações de sublevações como a que ocorreu em 1964, sobretudo se considerarmos os elementos pontuais ou episódicos envolvidos em cada caso em particular. Outras causas, mais frequentes, apontam para o temor ao fortalecimento das mobilizações populares, para o medo do comunismo, do socialismo e outros “ismos” sempre indigestos aos setores conservadores (anarquismo, trabalhismo, populismo etc.). Isto, sem falar, é claro, nos fatores econômicos de mais longa duração que tanto chamaram a atenção de sociólogos e cientistas políticos nos anos 1970 e 1980 - os primeiros de fato a produzirem estudos mais sistemáticos sobre a ditadura, num período de forte predomínio acadêmico do marxismo (1).
Além desses aspectos, muito complexos para serem tratados aqui, dois traços da época parecem pouco percebidos: o ranço autoritário que marcava a cultura política brasileira (2), que pode ser visto na “elasticidade semântica” com que era utilizada a palavra democracia; e certa legitimidade moral de que gozavam os militares perante alguns segmentos da sociedade, que os percebiam como verdadeiros guardiões da ordem legal. Se tomarmos aqui quatro casos exemplares de golpes ou tentativas de mesmo teor nos anos 1950 e 60 - referentes aos anos de 1954, 1961, 1964 e 1968 - poderemos apontar como, pelo menos, um desses dois aspectos acabou perdendo seu vigor, enquanto o outro continua sendo um dos grandes desafios à consolidação da democracia no Brasil.
Comecemos pelo exemplo de agosto de 1954: tudo já parecia pronto para a deposição de Getúlio Vargas e, não fosse o suicídio do presidente, os setores militares e oposicionistas teriam tomado o poder argumentando a “defesa da ordem e das instituições democráticas”. Somente um gesto de tamanho significado simbólico (o suicídio do presidente) parece ter tido o potencial de modificar o quadro político de um Getúlio completamente acuado, vituperado constantemente pela imprensa que, desde o evento da rua Tonelero, acentuava suas críticas contra o “mar de lama” que assolaria o Palácio do Catete. O suicídio de Vargas, aliás, serve para demarcar como qualquer tentativa de manipulação da opinião pública acaba sendo limitada diante do simbolismo de determinados eventos: era impossível, aos grandes jornais que faziam oposição no período, não destacar o caráter impressionante e a grandiosidade das manifestações e da comoção popular geradas pela morte de Getúlio (até porque a morte do político gaúcho fortalecia mitos de grande apelo no imaginário nacional, como o do sacrifício pela libertação da pátria do jugo estrangeiro, amplificado no “lugar de memória” que se tornaria a carta-testamento) (3).
O ano de 1961 é igualmente exemplar: a inesperada renúncia do presidente que parecia, finalmente, ter conseguido alçar as forças conservadoras à chefia do Executivo pelo voto popular fez novamente ressurgirem as ameaças e suspeitas de golpe contra a democracia. O até hoje incompreensível gesto de Jânio Quadros, geralmente interpretado como uma patética tentativa de se perpetuar no poder, impulsionou mais uma tentativa militar de interromper o processo democrático a partir do impedimento da posse do vice-presidente João Goulart, que se encontrava numa viagem oficial à China. Desta vez, entretanto, o argumento pela defesa da ordem e da democracia contra a ameaça comunista (que Jango supostamente representaria) se mostrava forçado demais: a ênfase no respeito às instituições feita pela Rede da Legalidade (movimento liderado por Leonel Brizola, mobilizando o povo gaúcho a resistir às investidas contra a democracia) era, sem dúvida, mais crível e a solução encontrada, o regime parlamentarista, impediu o golpe por meio da limitação do poder presidencial.
1964: novamente o argumento da defesa da democracia e da legalidade seria utilizado em favor do rompimento da ordem constitucional, desta vez com êxito dos conspiradores e consequências mais profundas para o país. Naquele momento, a guinada do governo Jango em favor da aprovação das “reformas de base” e os boatos sobre suas possíveis manobras para manter-se no poder davam mais substância ao forçado argumento da legalidade e da democracia, fazendo com que os conspiradores militares gozassem de maior apoio de determinados segmentos, como parte das camadas médias urbanas (que produziram suas cruzadas contra o comunismo e o ateísmo nas autodenominadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade). O desfecho já sabemos: nada de uma rápida “intervenção saneadora” da vida pública, como se argumentava e foi usual até então, mas sim vinte e um anos de um violento regime que não respeitava direitos humanos dos mais elementares.
O argumento em defesa da democracia e da ordem legal seria novamente ouvido em 1968. O aumento significativo das manifestações contra a ditadura, materializado em eventos marcantes como a “marcha dos cem mil” e as passeatas e protestos estudantis, casava-se perfeitamente com os anseios daqueles que há tempos já apregoavam um fechamento ainda maior do regime (tudo, é claro, em favor da democracia). É difícil ponderar até que ponto 1968 representou realmente um golpe (o chamado “golpe dentro do golpe”), já que, no fundo, a data parece apontar mais uma acentuação das características autoritárias do regime político implantado em 1964. Aliás, é curioso notar que fórmula semelhante à expressão “golpe dentro do golpe”, recorrentemente utilizada para criticar a ditadura, foi empregada inicialmente por Costa e Silva, em seu primeiro pronunciamento após a decretação do Ato Institucional n. 5: “sempre que imprescindível, como agora, faremos novas revoluções dentro da Revolução”, diria o marechal num discurso feito durante a cerimônia de formatura de oficiais da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), no Rio de Janeiro. Na segunda quinzena de novembro de 1968, coronéis da ECEME já haviam redigido um documento conclamando Costa e Silva a comandar “uma revolução dentro da Revolução”.
As divergências entre os grupos militares, indicada pelo uso das expressões “linha dura” e “linha moderada” (empregadas inclusive para explicar a mudança de 1968, devido à vitória dos “duros”), portanto, não pode obscurecer a existência de aspectos comuns entre eles, como o desprezo pela democracia e o apego ao uso da força contra os adversários. O Ato Institucional n. 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, institucionalizava tudo isso, “legalizando” práticas autoritárias e dando ao presidente da República poderes para fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos, remover ou aposentar funcionários, entre outros atos de força contra setores oposicionistas.
De fato, os quatro casos mencionados servem para ilustrar aquilo que já destacamos sobre os traços autoritários que marcavam a cultura política brasileira na época e a crença de determinados setores no caráter “salvacionista” dos militares. No primeiro caso, o uso elástico do termo democracia, várias vezes empregado em favor do próprio rompimento das instituições democráticas, serve para exemplificar como aquele não representava ainda um valor realmente solidificado na sociedade brasileira (pelo menos, no sentido que pretendemos dar hoje à noção, quando as instituições democráticas parecem mais estabelecidas no país). Por outro lado, as sucessivas ameaças ou concretizações de golpes com participação de militares indicam certo messianismo atribuído à instituição que, desde a implantação da República, foi paulatinamente aumentando sua importância na sociedade brasileira, até assumir uma espécie de “papel moderador” após 1945 (em contraposição ao “papel desestabilizador” da Primeira República, segundo José Murilo de Carvalho) (4).
Para alguns segmentos sociais nos anos 1950 e 1960, os setores castrenses apareciam como símbolos de retidão moral, como reserva dos verdadeiros valores da nacionalidade e, por isso, aptos a intervir para salvar a República. Uma representação, diga-se de passagem, que os próprios membros da corporação quase sempre prezaram, considerando-se superiores aos civis, que, além de corruptíveis, seriam desapegados dos valores cívicos.
De todos os casos mencionados, o de 1968 é aquele que teve mais consequências para a reformulação de um dos traços que indicamos como marcantes da sociedade brasileira dos anos 1950 e 1960. O endurecimento da ditadura, que, no fundo, significava a opção pelo uso cada vez mais acintoso da força contra aqueles que se opunham ao regime, institucionalizando a tortura e a eliminação física dos opositores, demoraria apenas alguns anos a repercutir na opinião pública e macular a imagem límpida que alguns segmentos sociais ainda possuíam da corporação militar. Sem dúvida, esse processo não foi “total”, pois não é difícil encontrar, ainda hoje, algumas manifestações nostálgicas em relação ao período autoritário (tido como época da ordem e do pleno emprego, por exemplo). Ele também não foi automático ou simultâneo, já que os êxitos econômicos e a rígida censura do governo Médici ajudaram a escamotear a faceta autoritária do regime no início dos anos 1970, ao passo que o processo de “abertura política” do período Geisel seria realmente aquele que (apesar de suas ida e vindas) possibilitaria maior exposição das mazelas da ditadura.
Portanto, seria apenas a partir de meados dos anos 1970 que os casos mais graves de sevícias e maus-tratos contra presos políticos se tornariam mais conhecidos, o que não tira a importância da opção feita em 68 para a desconstrução da imagem positiva dos militares: muitas pessoas que viam com bons olhos o regime instaurado em 1964 passariam a reavaliar sua posição sobre o papel da corporação na política brasileira devido ao aumento da violência repressiva. Foi, de certo modo, o que aconteceu com parte dos setores médios da sociedade, que, depois de ajudar a promover as marchas da família contra o suposto comunismo de Jango e regozijar-se com o “milagre econômico”, acabou sendo sensibilizada quando a repressão bateu mais diretamente na sua porta (pense-se, por exemplo, no caso das “marchadeiras” que tiveram filhos ou parentes próximos levados a conhecer os “porões da ditadura”). Um exemplo ilustrativo nesse sentido e que tem mais importância por sua repercussão na opinião pública é o da mudança de postura da maioria dos grandes jornais: depois de apoiar e demandar a “revolução gloriosa de 1964”, muitos deles passariam, aos poucos, a empregar termos como golpe, ditadura e condenar o regime político comandado pelos militares.
A opção pela “ditadura escancarada” de 1968 (para usar a feliz expressão de Elio Gaspari) (5), portanto, trouxe maiores conseqüências à imagem dos militares, que parecem ter realmente perdido a batalha pela memória sobre o período dos anos 1960 e 1970. Mas, se certo estigma parece ter recaído sobre a corporação (a ponto de, hoje, a sociedade brasileira não saber muito bem o que esperar ou o qual o verdadeiro papel das Forças Armadas), resta ainda o outro desafio mencionado: o que permanece da cultura política autoritária que caracterizava a sociedade brasileira e que foi, de alguma forma, estimulada pelo regime militar? Quais os usos possíveis da palavra democracia hoje? Palavras, como sabemos, não têm significado por si mesmas, mas são dotadas de sentido a partir das relações estabelecidas dentro de um contexto que possibilita ou interdita determinados usos. Que significados a palavra democracia ainda pode comportar hoje em dia na sociedade brasileira?
(*) Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Subversivos e pornográficos: censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011 (no prelo).
NOTAS
(1) Ver FICO, Carlos. Além do golpe: visões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.
(2) Pela natureza deste texto, utilizo aqui de forma bastante livre o conceito de cultura política. Gostaria de ressaltar, entretanto, que tal uso não exclui a percepção da pluralidade e da complexidade das diferentes culturas políticas presentes na sociedade brasileira dos anos 1950 e 1960 (um aprofundamento nesse sentido inviabilizaria este artigo).
(3) Mesmo os jornais que faziam oposição a Vargas destacaram com detalhes as cenas impressionantes de manifestações populares que se seguiram ao suicídio. O periódico O Globo, por exemplo, que foi impedido de circular no dia 24 de agosto de 1954 devido aos ataques populares contra a sede do jornal, publicou na tarde do dia 25 uma das mais conhecidas imagens do enorme cortejo fúnebre de Getúlio Vargas (a imagem foi reproduzida na capa do jornal).
(4) CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
(5) GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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