quarta-feira, 31 de março de 2010

Reforma da Saúde: o sentido político da vitória de Obama

Carta Capital - Matéria da Editoria:
Internacional

31/03/2010

Reforma da Saúde: o sentido político da vitória de Obama
Barack Obama apostou todas as fichas e conseguiu uma vitória na reforma do sistema de saúde, algo que Bill Clinton não havia conseguido e que o coloca, na tradição democrata, ao lado de Franklin Delano Roosevelt e Lyndon Johnson. Segundo David Leonhardt, colunista do The New York Times, para além das dúvidas sobre a reforma há uma coisa clara: “A lei aprovada por Obama é o maior ataque do governo federal contra a desigualdade econômica desde que a desigualdade começou a crescer há mais de três décadas”. A reforma da saúde, segundo o mesmo colunista, pode significar, em um sentido mais amplo, o começo do fim da era Reagan. O artigo é de Martín Granovsky, do Página 12.
Data: 29/03/2010
Os Estados Unidos são o único país desenvolvido sem cobertura universal de saúde. Até a reforma que acaba de ser aprovada no Congresso, cerca de 15% da população, mais ou menos 46 milhões de pessoas, não tinham cobertura alguma. A cifra inclui os 10 milhões sem cidadania. Antes da crise das hipotecas-lixo, a economia familiar costumava desmoronar em caso de necessidade de um grande gasto de saúde. Idosos, pessoas incapacitadas para o trabalho e uma parte dos mais pobres já estavam cobertos pelas reformas do presidente Lyndon Johnson, em 1965. Havia lacunas na cobertura para a classe média e para os trabalhadores que supostamente foram preenchidas agora. Nos EUA, o gasto em saúde representa 16,2% do produto bruto do país, um valor superior ao de Reino Unido e Japão, mas a lógica do lucro que rege o sistema pode fazer com que uma diabete seja mortal por falta de dinheiro para o tratamento.

Com a lei de saúde aprovada no Congresso, 95% dos habitantes ficará coberto. A lei obriga a contratação de uma cobertura de saúde e prevê subsídios para quem não puder fazê-lo. Por pressão de um grupo de dez deputados democratas anti-aborto, com base no meio oeste do país, a cobertura só abrangerá os casos de abordo em casos de incesto ou violação. A reforma custará cerca de 940 bilhões de dólares ao ano. A cifra é menor do que a estimada inicialmente, o que serviu para conseguir votos em um Congresso em fase de transição desde que a cadeira do falecido Ted Kennedy, democrata por Massachusetts, foi ganha pelo republicano Scott Brown. Essa derrota deixou os democratas do Senado obrigados a construir consensos para obter a maioria necessária à aprovação de projetos.

O sábado de Obama
Obama jogou toda sua reputação e prestígio na reta final da campanha para aprovar a lei. Conversou com a maioria dos legisladores democratas no sábado, 20 de março, e fez um discurso quase plebiscitário. Lembrou que assumiu a presidência, no dia 20 de janeiro de 2009, em meio à pior recessão desde a Grande Depressão dos anos 30, com 800 mil novos desempregados, as finanças colapsando e os sistemas de cobertura caindo. Disse ainda que, mesmo antes da última recessão, já havia aqueles que viviam sua própria crise, às vezes causada pelo fato de ter um filho que precisou usar a cobertura de saúde, com a desvantagem de que esta não levava em conta as suas condições preexistentes até aquele momento. Mencionou o problema de uma pessoa com problemas de saúde obrigada a se aposentar as 50. Ficaria sem trabalho e sem cobertura suficiente. Obama fez os deputados democratas sorrirem quando ironizou a súbita preocupação dos líderes republicanos acerca do horrível futuro que aguardaria o governo caso a lei fosse aprovada.

Segundo o próprio Obama - que criticou o tipo de cobertura europeu, diferente do pensamento político médio nos EUA –, a essência da nova legislação é que “garantiremos que o sistema privado de seguro de saúde funcione para as famílias comuns”. A primeira pessoa do plural remete ao Estado, mas Estado, ou governo, não são boas palavras na tradição estadunidense. Aqueles que acessarem o sistema formarão grandes conglomerados e se beneficiarão da redução de preços ou de uma melhor qualidade de serviço. E haverá uma redução de preços impositiva para trabalhadores, pequenos e médios empresários. Tudo isso, segundo Obama, não só sem aumentar o déficit mas, ao contrário, reduzindo-o. “Falei individualmente com muitos de vocês e sei que é um voto difícil, mas não votem a lei por mim, tampouco pelo Partido Democrata, mas sim por seus eleitores, pelo povo norte-americano”, pediu Obama. E acrescentou: “Estamos orgulhosos de nosso sentido individual e de nossa liberdade, mas também de nossa preocupação com a vizinhança, com aqueles que precisam de ajuda e de nosso sentido comunitário”. Obama terminou dizendo que havia chegada um desses instantes em que um político diz: “Para isso comecei (na política), isso é o que queria”. E arrematou quase no final com uma frase: “Debatemos durante décadas sobre a reforma da saúde. Agora é o momento de votar a lei, e eu confio que vocês o farão”. E fizeram.

Pedras e ameaças
Muitos deputados democratas receberam oferta de proteção. Em vários pontos dos EUA, de Wichita a Cincinnati, vidros de sedes democratas foram atingidos e vários legisladores receberam ameaças de morte.

Quando os números estão parelhos, cada voto conta. Dennis Kucinich e representante democrata por Ohio e ex-prefeito de Cleveland. Antes do voto, Obama o convidou para subir no Air Force One para conversar. Aos 63 anos, político experimentado, como vice-presidente da Comissão de Assuntos Domésticos analisou em detalhe o projeto da reforma da saúde e sempre esteve a favor de uma cobertura ampla. Kucinich disse que esta reforma não é a melhor, mas decidiu votar por ela para que Obama não sofresse um impacto negativo, porque seus eleitores são favoráveis à extensão da cobertura e porque, assim, terá legitimidade para seguir lutando. “Com a lei derrotada, diríamos adeus a novas oportunidades”, disse Kucinich em conversa com Peter Scheer, de www.truthdig.com. E recordou que já houve uma polêmica no Congresso há 16 anos, quando Bill Clintou propôs a reforma da saúde e fracassou. “Se eu votasse contra, quem iria me escutar depois?”, afirmou o deputado que é um crítico de posturas como a decisão de Obama de aumentar a escalada da guerra no Afeganistão e luta há 14 anos por um sistema de saúde com critério social. “Alguma coisa é melhor do que nada”, resumiu (ao falar do texto final aprovado).

Kucinich acredita que, com a lei aprovada, poderá seguir defendendo critérios ainda mais inclusivos na saúde, que não estejam baseados no lucro, pelo direito de os Estados terem seus sistemas de saúde e também discutir temas como dieta, nutrição e medicinas alternativas. “Com a lei aprovada, confio que poderemos avançar também em outros temas como a política econômica, para que a presidência de Obama restabeleça o trabalho de muita gente”, disse o deputado.

A lei de saúde foi aprovada com um recorde histórico: é a primeira lei importante que não tem sequer um voto republicano na Câmara baixa. Isso não acontece normalmente no Congresso norte-americano, onde os interesses dos Estados às vezes convertem deputados republicanos em governistas (num governo democrata) e vice-versa. E o vice-versa ocorreu mais uma vez. A reforma foi aprovada por 219 votos contra 212. Destes 219, nenhum foi republicano. Dos 212, 178 foram republicanos e 34 democratas.

O fim da era Reagan
Segundo David Leonhardt, colunista do The New York Times, para além das dúvidas sobre a reforma há uma coisa clara: “A lei aprovada por Obama é o maior ataque do governo federal contra a desigualdade econômica desde que a desigualdade começou a crescer há mais de três décadas”. Para Leonhardt, esses 30 anos começaram no final dos anos 70, quando os impostos sobre os ricos baixaram mais que as taxas pagas pela classe média e pelos pobres. Em janeiro de 1981, começou sua primeira gestão o ultraconservador Ronald Reagan, seguindo um caminho que havia sido iniciado na Inglaterra por Margareth Thatcher.

Naquele momento, eles receberam o nome de neoconservadores, uma denominação que, na América Latina, mudou para neoliberais, sendo utilizada, porém, com o mesmo sentido: maior desigualdade e desregulação. Segundo Leonhardt, a reforma da saúde poderia significar, em sentido amplo, o começo do fim da era Reagan. Em parte, o novo sistema implica uma mudança impositiva. Na redistribuição do orçamento que bancará o seguro médico participarão obrigatoriamente com seus aportes as famílias com renda superior a 250 mil dólares anuais. Está calculado pelo Tax Policy Center, de Washington, que, em 2013, as famílias com rendimentos superiores a 1 milhão de dólares/ano pagarão 46 mil dólares a mais do que hoje. Também sofrerão recortes os subsídios aos atuais seguros de saúde de executivos e acionistas de grandes empresas de seguros. Os pobres que até agora não recebiam ajuda passarão a recebê-la e as famílias com renda anual de 88.200 dólares, abaixo da qual encontra-se a linha da pobreza, serão beneficiadas. Mas em questões de saúde, a desigualdade tem cara e corpo e as debilidades dos vulneráveis serão menores. O índice de 95% de cobertura, calculado pelos legisladores, está previsto para ser alcançado em 2019.

“Plano qüinqüenal”. Esse foi o título da coluna de 22 de março, publicada por Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, em seu blog. Ao final ele esclareceu que era uma piada, para não ser acusado de simpatias soviéticas. Essa coluna – breve e precisa – é o festejo orgulhoso de um militante. Aqui vai, traduzida na íntegra: “Há cinco anos que comecei a cruzada pela reforma na saúde. Naquele momento todos falavam de privatizar a Seguridade Social, e muitos pensaram que isso realmente ocorreria. Escrevi então que uma reforma séria do sistema de cobertura de saúde não estava na mesa e no clima política de então não poderia estar. A crise do sistema de cobertura de saúde é ideologicamente inconveniente. E aqui estamos: aí estão de pé a Seguridade Social, a reforma da saúde – imperfeita, negociada, mas real. Ela ocorreu”.

A vitória terá custos?
David Sanger é um analista respeitado nos Estados Unidos. Seu último livro, “A herança”, publicado no início de 2009, não trata só de saúde, mas sim do mundo que Obama enfrentaria: Irã, Afeganistão, Paquistão, Coréia do Norte e China. Para Sanger, Obama conseguiu um triunfo vital. Ganhou uma grande batalha, enquanto Bill Clinton foi derrotado no mesmo tema e George Bush foi derrotado em seu segundo mandato quando quis liquidar a Seguridade Social. Estimulados pelos ultradireitistas do movimento Tea Party, liderado pela ex-candidata a presidente Sarah Palin, os republicanos ficaram como “o partido do Não”. Sanger registra o voto do partido e recorda que mesmo a proposta de cobertura medida de Johnson foi apoiada por alguns votos republicanos, apesar de também ter sido criticada por seu suposto espírito comunista e marxista.

Desta vez, os republicanos estavam confiantes. Acreditaram que bastava criticar o suposto estatismo de Obama para derrubar o projeto e debilitar mortalmente a um presidente com pouco mais de um ano na Casa Branca. Sanger considera a aposta de Obama sob uma perspectiva mais ampla e descobre alguns interessantes ciclos na questão social. Nos anos 30, Franklin Delano Roosevelt enfrentou a crise com um papel ativo do Estado na proteção dos desempregados e dos mais pobres. Trinta anos depois, nos anos 60, foi a vez de Johnson implantar o Medicare para 20 milhões de cidadãos e medidas legais contra a discriminação dos afroamericanos. E agora Obama. Os três presidentes democratas foram taxados de comunistas. Aos três disseram que o país entraria em bancarrota e seus sistemas não funcionariam. Segundo Sanger, Obama confia em aumentar seu consenso com resultados práticos. Por exemplo, quando uma criança não for rechaçada, como ocorria até agora, por sofrer de uma enfermidade anterior ao momento em que contrata o plano de saúde. Em termos políticos, se o processo seguir bem, Obama terá provado que “é capaz de arriscar tudo para converter suas convicções em legislação”.

Obama se beneficiará eleitoralmente com a reforma este ano? Não é seguro dizer que sim ou que não. Leonhardt, por exemplo, se abstém de qualquer prognóstico para a eleição legislativa deste ano. Prefere citar uma frase de David Frum, membro da equipe que escrevia os discursos do ex-presidente George Bush: “As maiorias legislativas vêm e vão, mas a lei de saúde é para sempre”. Anne Applebaum, colunista do The Washington Post, tampouco se arriscou a fazer prognósticos, mas trouxe ao debate público o fantasma dos conservadores ingleses, fora do poder desde 1997 por serem considerados “arrogantes e irritantes”, além de avessos à modernidade. Sobre os republicanos que agora acusam Obama de ser “comunista”, Applebaum disse que, na política, “quando se perde o centro perde-se a próxima eleição”.

O American Enterprise Institute (AEI) foi e é um dos centros dos neoconservadores. No domingo, um de seus pesquisadores escreveu em sua página na internet que republicanos e conservadores tinham grande parte da culpa pela nova lei que, segundo ele, já estava praticamente aprovada. “Nada de negociar, nada de compromisso. Iríamos com tudo e causaríamos o Waterloo de Obama. E perdemos tudo”, escreveu.

Dias depois, o AEI decidiu rescindir o contrato, enquanto o diário de negócios The Wall Street Journal o atacava como a encarnação do mal. O pesquisador citado é o mesmo Frum citado por Leonhardt em sua coluna. O mesmo que, como redator dos discursos de Bush, foi o autor de uma famosa expressão que seria utilizada pelo presidente republicano para se referir ao Iraque, Irã e Coréia do Norte: “Eixo do Mal”.

Tradução: Katarina Peixoto

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