sexta-feira, 26 de março de 2010

As dúvidas sobre o caso Nardoni

Publicada no Portal do Nassif

As dúvidas sobre o caso Nardoni

Por Jotavê

Já disse aqui que, baseando-me apenas naquilo que leio nos jornais, eu não teria dúvida em votar pela condenação dos Nardoni. O ponto central é a possibilidade, na minha opinião apenas teórica, de haver um terceiro adulto na cena do crime. Não há indício algum dessa presença, não há nenhuma justificativa razoável para ela, não há nem sequer um tempo e um espaço razoáveis no qual esse suposto assassino pudesse agir. É da razoabilidade da hipótese dessa presença, no entanto, que depende a razoabilidade da dúvida quanto à autoria do crime e, na ausência de uma dúvida RAZOÁVEL (que não se confunde com uma dúvida meramente POSSÍVEL), a condenação é exigida pela lei. Há possibilidade de erro? Voltamos ao mesmo ponto. Em TODO julgamento há possibilidade de erro. Tudo que a justiça humana pode (e DEVE) fazer é reduzir essa possibilidade a um nível mínimo – exatamente aquele determinado pela razoabilidade.
Dito isto, é preciso reconhecer que a imprensa brasileira tem-se mostrado completamente incapaz de confrontar as opiniões técnicas que foram construindo o cenário sobre o qual se baseia um julgamento como esse que acabei de fazer. Diante da palavra de um perito, o repórter sente-se acuado, impotente, como se estivesse diante de um decreto divino ao qual ele não tem qualquer possibilidade de se contrapor. Não vi até agora uma única entrevista na qual os peritos desse caso fossem chamados a justificar o que vem dito nos laudos, a explicar melhor suas conclusões e as razões que encontraram para chegar até elas. O repórter, por via de regra, fica completamente cego diante da menção ao Luminol, ou da alegação de que tais marcas na camiseta de Alexandre Nardoni só poderiam ser feitas se ele estivesse carregando um peso de aproximadamente 35kg – coincidentemente, o peso de Isabella. O vocabulário técnico parece ter esse condão de emudecer a reportagem, fazendo-a engolir qualquer afirmação sem nenhum tipo de questionamento adicional. O leitor, na outra ponta, terá que beber esse discurso técnico sem nenhum tipo de filtro e, na melhor das hipóteses, será obrigado a formular solitariamente as perguntas que o repórter não formulou. Não encontrará, porém, nenhuma resposta para elas, pois não dispõe, como o repórter dispunha, da presença de alguém que lhe pudesse desfazer as dúvidas.
Vejam, por exemplo, o caso dessas marcas na camiseta de Alexandre. As marcas deixadas pela rede de nylon são apenas mecânicas, ou dependem da sujeira acumulada na malha? Se dependem da sujeira, o tipo e a quantidade de sujeira contribuem para determinar o tipo e a magnitude das marcas? Se contribuem, é razoável pensar que uma quantidade maior de sujeira produza marcas mais pronunciadas. Foram feitos testes para determinar o tipo e a quantidade de resíduos presentes na rede do apartamento? Que testes foram esses? As cenas que vimos na televisão mostrando os técnicos cortando a malha de uma rede para produzir um buraco semelhante ao buraco original não passam a impressão de que se tenha tomado cuidado para reproduzir um buraco que tivesse exatamente as mesmas dimensões do original. Isso é só impressão, ou tomou-se esse cuidado? Quem fazia os cortes tinha o cuidado de seccionar o fio exatamente em determinados pontos, ou tinha em vista apenas uma reprodução visualmente próxima? Isso pode influenciar o resultado da medição? A pressão de um corpo sobre a malha pode ser determinada por um peso adicional carregado por quem se debruça. Mas não é determinado também pela posição e pelo pressão que a pessoa faz sobre a malha? Alguém que jogasse o próprio peso do corpo contra a rede não produziria marcas semelhantes? Ou seja, a hipótese de que Alexandre carregava um peso de 35kg. quando se inclinou não supõe como constante uma inclinação determinada? Como seriam as marcas de alguém que carregasse um peso de 25kg? E as marcas de alguém que carregasse um peso de 45kg? Seriam claramente distintas? Novamente, uma pequena variação da inclinação do corpo ou da quantidade de resíduos presentes na malha não seria suficiente para dar conta dessas diferenças? Se não, por que não?
Nada disso foi perguntado aos peritos. Diante do argumento técnico, a razão brasileira normalmente se cala, estupefata, numa aceitação reverente do oráculo “científico”. Algo semelhante, se não me engano, acontece em várias outras áreas – na economia, sobretudo. É como se a falta de qualificação técnica do repórter o impedisse de raciocinar e olhar de frente os argumentos que lhe estão sendo apresentados. O que o técnico está expondo, no entanto, é um raciocínio repleto de pressupostos, que podem ser válidos, mas nem por isso são insondáveis. Falta acima de tudo ao jornalista brasileiro aquilo que deveria ser a sua qualidade mais indispensável – a curiosidade. Ele recolhe as palavras do técnico em estado bruto, e não se sente no direito de inquiri-las, de lançar sobre elas um olhar mais crítico. É acima de tudo essa passividade que ele, repórter, transmite a seus leitores, que acabam tendo em relação ao texto de jornal a mesma atitude que o jornalista teve diante da declaração de seu entrevistado.
É preciso ser um técnico para dar determinadas respostas, mas não é preciso ser um técnico para fazer perguntas, para levantar dúvidas, para ter curiosidade de saber mais sobre um determinado assunto, por mais árido que ele seja. Desconfio que, em muitos casos, o jornalista não faz as perguntas devidas por um motivo muito simples: ele não quer parecer burro. No fundo, ele não faz as perguntas que deveria fazer porque deseja transmitir ao leitor a impressão de que ocupa a posição do técnico júnior diante do técnico sênior. É essa a impressão que muitos jornalistas econômicos muitas vezes me passam. Não “apertam” o entrevistado, pois desejam aparecer na cena como INTERLOCUTORES tecnicamente competentes, e não como simples… curiosos. Isso mata a reportagem. O repórter se transforma numa espécie de aluno aplicado, que não tem a coragem de fazer perguntas que fujam de um script predeterminado. Um técnico é só um técnico – uma pessoa que detém determinados conhecimentos e que usa esses conhecimentos para solucionar quebra-cabeças dos mais diversos tipos. O repórter não tem que se colocar no lugar do técnico. Tem que tomá-lo como uma das peças DE SEU PRÓPRIO QUEBRA-CABEÇA, e falar de um lugar autônomo. Tem todo o direito de perguntar e de ser curioso, e não tem porque engolir qualquer coisa que lhe seja apresentada com a sintaxe da ciência.
“Sapere aude” – é isso, acima de tudo, que falta ao espírito anti-iluminista de nossos tempos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente e ajude a construir um conteúdo mais rico e de mais qualidade.