segunda-feira, 21 de março de 2011

Não é hora de fugir. Mário faz um retrato do Japão de hoje.

Um Japão tentando voltar à normalidade, apesar da tragédia estar muito longe do fim




Publicado em Asia/Tokyo março 21Asia/Tokyo 2011 por Mário Kodama - Diários do Arquipélago


Apesar das mazelas de uma possível explosão da usina nuclear de Fukushima, o Japão começa a tentar voltar a uma relativa normalidade. Pelo menos é o que começo a perceber, principalmente no que se refere ao comportamento dos japoneses e das pessoas comuns. Logicamente, o noticiário continua estérico.

A principal notícia da mídia japonesa hoje é a informação do milagroso salvamento de uma velhinha de 80 anos e do seu neto de 16, que estavam 216 horas, enfrentando neve e isolamento, sob os escombros da sua casa, que foi levada pelo tsunami por vários quilômetros, longe do local original. Segundo o jornal japonês, ambos estavam fazendo um lanche na cozinha, no segundo andar da residência, quando a casa foi levada pelo tsunami. Eles sobreviveram graças aos mantimentos da geladeira que sobrou com eles, apesar do soterramento, sob o teto da cozinha. De acordo com o noticiário, os dois passam bem – tão bem, que deverão ter alta em muito breve.

Hoje o dia está nublado e caindo uma geladérrima e bem-vinda chuva, rompendo um jejum de uns 15 dias. A primavera está querendo chegar, mas tem dificuldades para engrenar a sua presença. As temperaturas voltaram a cair. Está fazendo mais ou menos 10 graus no momento que escrevo este post. Ontem a temperatura chegou a cerca de 15 a 17 graus, bem agradável para quem está acostumado a um inverno que oscila em média entre zero a 5 graus nos momentos mais frios, entre janeiro e fevereiro, nesta região.

Os meus colegas japoneses estavam me informando sobre os cuidados para evitar tomar esta chuva, que deve estar recheada de radiatividade. Vendo o noticiário me informo que a radioatividade detectada na minha região é absolutamente inofensiva. Apesar da nocividade da chuva, o legal que ela dá uma boa faxina no ar e isso me tranqüiliza um pouco. Mas todo cuidado é pouco.

Peguei uma folga de novo e nem penso em sair de casa, nem pra buscar o meu leite, cuja falta completa quase uma semana. De Pão, fiz um estoquezinho, comprando de vários supermercados em racionamento. Graças a Deus, a minha região não sofreu até agora com o rodízio de blackout, e parece que não deve sofrer. Ouvi dizer que onde estou é considerado de segurança humanitária, em função da grande quantidade de hospitais e casas de repouso para velhinhos que existem.

Graças a este fato, consegui baixar a discografia do meu tão querido músico folclorista argentino, Atahualpa Yupanqui. Era um arquivo de um giga e meio, que deve ter durado uns cinco dias para fazer o seu download completamente. Já o download do arquivo de um giga da discografia do Gilberto Gil está paralisado há dois dias. Baixei perto de 15% do seu total. É uma pena. Não sei conseguirei baixa-lo.

O arquipélago completa 11 dias do grande terremoto, e desde de anteontem as linhas de trem da minha região, apesar do rodízio regional de blackouts, paulatinamente voltam à sua rotina, e o noticiário das estações de TV que estavam praticamente 24 horas dando notícias da tragédia voltaram a sua programação normal. Lógico que o noticiário continua totalmente recheado com a cobertura do terremoto e sobretudo da luta de Fukushima para tentar conter o calor dos seus reatores nucleares.

Parece incrível mas percebo agora que a principal preocupação dos meus colegas japoneses da casa de repouso para velhinhos onde estou trabalhando, era a de chegar atrasado ou as dificuldades que teriam que enfrentar para poder trabalhar. Com a relativa normalização do sistema de transporte público, eles parecem que ficaram até meio alheios aos noticiários da tragédia e a possibilidade da explosão da usina nuclear. A televisão fica o dia inteiro ligado no living da unidade onde trabalho, onde os velhinhos se reúnem para conversas, assistir televisão, e, naturalmente, para fazer as suas refeições. Eu fico ligado no noticiário, para perguntar aos colega o que está sendo dito, mas a maioria não tem mais muito interesse, e percebo até que sou um incômodo na minha inoportuna curiosidade.

Agora, a TV não é mais do que um aparelho eletrônico que exala estérico e paraóico uma realidade que aparentemente é distante e longínqua. Fica falando sozinha o dia inteiro na sala de jantar. Já as pessoas dessa casa retornaram ao seu inexorável cotidiano.

Dei uma entrevista para uma colega do Facebook sobre a aparente tranqüilidade da personalidade dos japoneses, apesar da não muito remota possibilidade de explosão nuclear em Fukushima, que parece estar sendo percebido até no exterior. Na minha mui modesta opinão, este comportamento me parece bem cultural e típico japonês. Ao contrário do Brasil, apesar de hoje ser bem menor, o japonês tem uma crença muito grande na sua sociedade e na figura dos seus profissionais, que é pouco comum até mesmo para um país de primeiro mundo como os Estados Unidos.

O exemplo mais típico é o fato de que o país custou a acreditar sobre a notícia da derrota do Japão na segunda guerra mundial. Tem até a folclórica história de soldados regatados nas ilhas do pacífico, que ainda estavam em estado de guerra, 10, 20 anos depois do armistício e o fim dos combates.

O japonês confia piamente nas suas instituições e não tem dúvidas de que o problema da usina nuclear será resolvido – . Até que haja a explosão. Aí eu acho que essa credibilidade deverá cair um ponto percentual. O japonês é sobretudo um teimoso e de um orgulho difícil de ser dimensionado. Ele precisa de uma tragédia para ir aos poucos aprendendo a começar a desconfiar das coisas e dobrar a verticalidade da sua personalidade. Isso melhorou muito depois da derrota na grande guerra. Por isso, ele não entende bem o esterismo e a muvuca da mídia estrangeira. Rs.

Mudando de assunto. Ontem, disse num post a uma grande amiga e grande colega jornalista, que ao querer permanecer no Japão posso me permitir um heroísmo do tipo Macunaíma, bem tupiniquim. Enquanto as pessoas da sala de jantar estão preocupadas e se matando para impedir uma explosão nuclear no cozinha, eu estou acomodado no meu tatame apreciando um bom sashimi e bebendo o meu saquê – aquecido, que nestas épocas de frio é o mais recomendável e uma das mais saborosas formas de apreciar a bebida, cuja delicadeza da sua testura e sabor combina fantásticamente com a frugalidade do sashimi. Eu acho que a minha coragem se resume à preguiça inercial congênita, que pode ser confundida por outras coisas.

A respeito deste negócio de deixar o Japão, tem uma meia dúzia de antas, ditas formadoras de opinião da comunidade brasileira, que estão fazendo campanha nas redes sociais na internet para que os brasileiros fiquem no país. E mau dizendo os brasileiros que querem voltar ao Brasil. Prá mim, é essa síndrome de orgulho e extremo moralismo que o nikkei brasileiro herdou dos seus antepassados. Eu acho que cada um faz o que dever fazer e ponto final. Tem gente que deveria cuidar a sua própria vida, ao invés de estar criticando o que os outros estão fazendo. Assim, o mundo seria um lugar muito melhor de viver. Idem, a comunidade brasileira no Japão.

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