Imprensa livre é imprensa transparente
Por Eugênio Bucci em 24/04/2012 na edição 691
Reproduzido do Estado de S.Paulo, 19/4/2012; intertítulos do OI
Os defensores de uma CPI mista sobre o escândalo Demóstenes-Cachoeira anunciaram há dois dias que já têm em mãos assinaturas sobrando para instalá-la. Coletaram 67 nomes no Senado Federal e outros 340 na Câmara dos Deputados, bem mais do que o mínimo necessário, de 27 no Senado e 171 na Câmara. Sem trocadilho, parece mesmo que as águas vão rolar. “Doa a quem doer”, teria dito um alto dirigente petista, com o propósito de dirimir quaisquer dúvidas quanto a uma vontade velada de seu partido de refugar e abafar a investigação. No dizer de estrategistas palacianos, a CPI poderá “respingar” no governo Dilma Rousseff (dando curso às metáforas líquidas que o episódio enseja), mas, mesmo assim, parece que ela vem aí. “Doa a quem doer”, repetiu uma liderança do combalido Democratas. Chegamos assim àquele ponto de não retorno, ou, se quisermos dizer a mesma coisa no linguajar do cancioneiro popular, daqui para a frente “não dá mais para segurar”. O coração do submundo da política poderá, sim, explodir, e aí vai doer em muita gente. Caixas-pretas correm o sério risco de ser viradas pelo avesso. Água mole em pedra dura, sabe como é.
Alguém já disse que esta, sim, será “a CPI do fim do mundo”, o que é bastante improvável. Como de costume, nessas horas o alarmismo sobe de tom, ganha constrangedora estridência, à beira da histeria. Os parlamentares e seus partidos que fiquem com o medo para eles – do ponto de vista da cidadania, quanto mais roupa suja for lavada em público (sigamos com as imagens aquosas), melhor. Quanto mais transparência, mais daremos razão a Hillary Clinton, segundo quem a presidente Dilma teria firmado um novo “padrão global” no combate à corrupção. Que assim seja.
A investigação não pode faltar nos regimes democráticos
No meio desse mar tão revolto, açoitado por tempestades verbais, não necessariamente cerebrais, há um tema paralelo que vem crescendo. Trata-se de um aspecto específico que raramente ocupa lugar nas páginas dos jornais: as relações entre esses esquemas de corrupção – como o de Carlinhos Cachoeira – e a imprensa. Isso não é objeto de CPI, naturalmente, mas deveria merecer mais destaque na pauta jornalística. O tema não deveria ser jogado fora junto com a água suja – ele é de interesse público. A questão é: em que termos ele é de interesse público?
Uns e outros já se apressaram a sentenciar que qualquer jornalista que entreviste ladrão presta serviços à bandidagem, num arroubo que, além de moralista, é falso, bastante estulto e, talvez, pérfido, mal-intencionado. E por quê? Muito simples. Levemos em conta que, por aqui, nenhum partido olha os antecedentes criminais de seus assim chamados “quadros” – ao contrário, uma boa folha corrida pode até mesmo ser critério de promoção nas instâncias partidárias. Nesse ecossistema, a atividade de cobrir a política requer de seus praticantes a rotina insalubre de conversar com vigaristas. Obrigatoriamente. Fora isso, o jornalismo sempre teve o dever de ouvir os fora-da-lei. É parte do ofício, parte dos afazeres de uma imprensa que se quer livre. Exatamente por isso, quanto mais forem visíveis e claros os procedimentos de repórteres que escutam assaltantes do erário, melhor para a instituição da imprensa e também para o cidadão.
É nessa medida que o assunto é de interesse público: embora não seja propriamente objeto de CPI, que se instala para investigar um fato concreto, deve ser esclarecido pela própria imprensa, uma vez que interessa à sociedade. Mais que isso: o esclarecimento desse tema ajudaria a sociedade a entender melhor a investigação jornalística e por que essa investigação não pode faltar, nunca, nos regimes democráticos. É um equívoco supor que, exposto nos jornais, esse assunto abriria caminho para os que atacam a liberdade de imprensa. Ao contrário, quanto mais tematizado, mais ele fornecerá subsídios para a defesa e a valorização da reportagem investigativa.
É o público leitor que tem direito à imprensa livre
É nesse ponto que chama a atenção a resistência ao debate. Para alguns jornalistas, esse tópico não passa de uma armadilha, uma casca de banana, um instrumento oportunista daqueles que pretendem regular – pela força do governo – o conteúdo do noticiário. Sim, pode até ser verdade. Admitamos que no meio da barulheira existam aqueles que se aproveitam do momento para criar um caldo de cultura favorável a que o poder enquadre o jornalismo – não subestimemos as megalomanias totalitárias que vão pela cabeça de uns e outros. Mas, no fundamental, o tema é mais relevante do que a intenção dos autoritários. Ele é de interesse público na exata medida em que a liberdade de expressão é de interesse público.
Muitos defensores da imprensa livre afirmam – com razão – que ela não pode ser pautada pelo Estado. Pela mesma razão, deveriam também afirmar que ninguém, em nome da liberdade de imprensa, deve pretender pautar o que os militantes políticos dizem ou deixam de dizer. Se dirigentes partidários lançam mão de palpites infelizes sobre a função dos jornais, o papel dos defensores da liberdade é desmontar esses palpites, mostrando que eles são infelizes. Insistir na mera desqualificação pessoal do autor do palpite é dar curso a um procedimento discursivo igualmente autoritário, que não contribui para que o público entenda melhor o jornalismo.
Uma imprensa que não se antecipa a compartilhar com a sociedade os seus critérios editoriais, os seus métodos e as suas condutas operacionais tem menos chances de ser defendida ativamente pelo seu próprio leitor. É ele, o público leitor, que tem direito à imprensa livre – é, portanto, a ele que a imprensa livre deve prestar contas. O cidadão tem mais apreço pelo jornalismo quando é convidado a compreendê-lo, a fiscalizá-lo e a sustentá-lo.
No mais, uma imprensa que não pratica a transparência tem menos autoridade para cobrá-la do Estado.
***
[Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM]
Os defensores de uma CPI mista sobre o escândalo Demóstenes-Cachoeira anunciaram há dois dias que já têm em mãos assinaturas sobrando para instalá-la. Coletaram 67 nomes no Senado Federal e outros 340 na Câmara dos Deputados, bem mais do que o mínimo necessário, de 27 no Senado e 171 na Câmara. Sem trocadilho, parece mesmo que as águas vão rolar. “Doa a quem doer”, teria dito um alto dirigente petista, com o propósito de dirimir quaisquer dúvidas quanto a uma vontade velada de seu partido de refugar e abafar a investigação. No dizer de estrategistas palacianos, a CPI poderá “respingar” no governo Dilma Rousseff (dando curso às metáforas líquidas que o episódio enseja), mas, mesmo assim, parece que ela vem aí. “Doa a quem doer”, repetiu uma liderança do combalido Democratas. Chegamos assim àquele ponto de não retorno, ou, se quisermos dizer a mesma coisa no linguajar do cancioneiro popular, daqui para a frente “não dá mais para segurar”. O coração do submundo da política poderá, sim, explodir, e aí vai doer em muita gente. Caixas-pretas correm o sério risco de ser viradas pelo avesso. Água mole em pedra dura, sabe como é.
Alguém já disse que esta, sim, será “a CPI do fim do mundo”, o que é bastante improvável. Como de costume, nessas horas o alarmismo sobe de tom, ganha constrangedora estridência, à beira da histeria. Os parlamentares e seus partidos que fiquem com o medo para eles – do ponto de vista da cidadania, quanto mais roupa suja for lavada em público (sigamos com as imagens aquosas), melhor. Quanto mais transparência, mais daremos razão a Hillary Clinton, segundo quem a presidente Dilma teria firmado um novo “padrão global” no combate à corrupção. Que assim seja.
A investigação não pode faltar nos regimes democráticos
No meio desse mar tão revolto, açoitado por tempestades verbais, não necessariamente cerebrais, há um tema paralelo que vem crescendo. Trata-se de um aspecto específico que raramente ocupa lugar nas páginas dos jornais: as relações entre esses esquemas de corrupção – como o de Carlinhos Cachoeira – e a imprensa. Isso não é objeto de CPI, naturalmente, mas deveria merecer mais destaque na pauta jornalística. O tema não deveria ser jogado fora junto com a água suja – ele é de interesse público. A questão é: em que termos ele é de interesse público?
Uns e outros já se apressaram a sentenciar que qualquer jornalista que entreviste ladrão presta serviços à bandidagem, num arroubo que, além de moralista, é falso, bastante estulto e, talvez, pérfido, mal-intencionado. E por quê? Muito simples. Levemos em conta que, por aqui, nenhum partido olha os antecedentes criminais de seus assim chamados “quadros” – ao contrário, uma boa folha corrida pode até mesmo ser critério de promoção nas instâncias partidárias. Nesse ecossistema, a atividade de cobrir a política requer de seus praticantes a rotina insalubre de conversar com vigaristas. Obrigatoriamente. Fora isso, o jornalismo sempre teve o dever de ouvir os fora-da-lei. É parte do ofício, parte dos afazeres de uma imprensa que se quer livre. Exatamente por isso, quanto mais forem visíveis e claros os procedimentos de repórteres que escutam assaltantes do erário, melhor para a instituição da imprensa e também para o cidadão.
É nessa medida que o assunto é de interesse público: embora não seja propriamente objeto de CPI, que se instala para investigar um fato concreto, deve ser esclarecido pela própria imprensa, uma vez que interessa à sociedade. Mais que isso: o esclarecimento desse tema ajudaria a sociedade a entender melhor a investigação jornalística e por que essa investigação não pode faltar, nunca, nos regimes democráticos. É um equívoco supor que, exposto nos jornais, esse assunto abriria caminho para os que atacam a liberdade de imprensa. Ao contrário, quanto mais tematizado, mais ele fornecerá subsídios para a defesa e a valorização da reportagem investigativa.
É o público leitor que tem direito à imprensa livre
É nesse ponto que chama a atenção a resistência ao debate. Para alguns jornalistas, esse tópico não passa de uma armadilha, uma casca de banana, um instrumento oportunista daqueles que pretendem regular – pela força do governo – o conteúdo do noticiário. Sim, pode até ser verdade. Admitamos que no meio da barulheira existam aqueles que se aproveitam do momento para criar um caldo de cultura favorável a que o poder enquadre o jornalismo – não subestimemos as megalomanias totalitárias que vão pela cabeça de uns e outros. Mas, no fundamental, o tema é mais relevante do que a intenção dos autoritários. Ele é de interesse público na exata medida em que a liberdade de expressão é de interesse público.
Muitos defensores da imprensa livre afirmam – com razão – que ela não pode ser pautada pelo Estado. Pela mesma razão, deveriam também afirmar que ninguém, em nome da liberdade de imprensa, deve pretender pautar o que os militantes políticos dizem ou deixam de dizer. Se dirigentes partidários lançam mão de palpites infelizes sobre a função dos jornais, o papel dos defensores da liberdade é desmontar esses palpites, mostrando que eles são infelizes. Insistir na mera desqualificação pessoal do autor do palpite é dar curso a um procedimento discursivo igualmente autoritário, que não contribui para que o público entenda melhor o jornalismo.
Uma imprensa que não se antecipa a compartilhar com a sociedade os seus critérios editoriais, os seus métodos e as suas condutas operacionais tem menos chances de ser defendida ativamente pelo seu próprio leitor. É ele, o público leitor, que tem direito à imprensa livre – é, portanto, a ele que a imprensa livre deve prestar contas. O cidadão tem mais apreço pelo jornalismo quando é convidado a compreendê-lo, a fiscalizá-lo e a sustentá-lo.
No mais, uma imprensa que não pratica a transparência tem menos autoridade para cobrá-la do Estado.
***
[Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM]
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente e ajude a construir um conteúdo mais rico e de mais qualidade.