sábado, 14 de maio de 2011

Morte de Bin Laden: queima de arquivo, traição e muito jogo de cena.

Via cartamaior.com.br

 

"Bin Laden foi traído? Certamente que sim. O Paquistão sabia onde ele estava" 

A desaparição de Bin Laden lança uma luz sombria sobre o Paquistão. Durante meses, o presidente Alí Zardari nos disse que Osama vivia em uma caverna no Afeganistão. E agora descobrimos que ele vivia em uma mansão no Paquistão. Foi traído? Claro que sim. Pelos militares ou pelos serviços de inteligência do Paquistão? É muito provável que pelos dois. O Paquistão sabia onde estava. Há uma pergunta muito óbvia sem resposta: as forças de segurança do Paquistão não poderiam ter capturado Bin Laden? O artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk - La Jornada

Um dom nada de meia idade, um fracassado político, rebaixado pela história – pelos milhões de árabes que exigem liberdade e democracia no Oriente Médio -, morreu no Paquistão neste domingo. E o mundo enlouqueceu. Nem bem havia nos apresentado uma cópia de sua certidão de nascimento, o presidente estadunidense apareceu no meio da noite para nos oferecer ao vivo um atestado da morte de Osama Bin Laden, abatido em uma cidade batizada em homenagem a um major do exército do velho império britânico. Um só tiro na cabeça, nos dizem. Mas e o vôo secreto do corpo até o Afeganistão e o igualmente secreto sepultamento no mar?

A estranha forma pela qual se livraram do corpo – nada de santuários, por favor – foi quase tão grotesca como o homem e sua perversa organização.
Os estadunidenses estavam embriagados de alegria. David Cameron chamou-o de um enorme passo adiante. A Índia falou em feito vitorioso. Um triunfo retumbante, alardeou o primeiro ministro israelense Netanyahu. Mas, após 3 mil estadunidenses assassinados no 11 de setembro, incontáveis outros no Oriente Médio, cerca de meio milhão de vítimas mortais no Iraque e no Afeganistão e 10 anos empenhados na busca de Bin Laden, oremos para que não tenhamos mais triunfos retumbantes.

Ataques em represália? Talvez ocorram, de pequenos grupos no Ocidente que não têm contato direto com a Al Qaeda. Ninguém duvide que alguém já esteja sonhando com uma brigada do mártir Osama Bin Laden. Talvez no Afeganistão, entre os talibãs. Mas as revoluções de massas dos últimos quatro meses no mundo árabe significam que a Al Qaeda já estava politicamente morta. Bin Laden disse ao mundo – e, de fato, me disse pessoalmente – que queria destruir os regimes pró-ocidentais no mundo árabe, as ditaduras dos Mubaraks e dos Ben Alis. Queria criar um novo califado islâmico. Mas nestes últimos meses, milhões de árabes muçulmanos se levantaram, dispostos ao martírio, mas não pelo Islã e sim por democracia e liberdade. Bin Laden não derrubou os tiranos: foi o povo. E o povo não quer um califa.

Reuni-me três vezes com o homem e só me restou uma pergunta por fazer: o que pensava ao observar como se desenvolviam as revoluções este ano, sob as bandeiras de nações, mais que do islã, cristãos e muçulmanos juntos, pessoas que seus homens da Al Qaeda gostam de arrebentar?

Aos seus olhos, seu êxito foi criar a Al Qaeda, instituição que não tinha carteira de membro. Bastava levantar uma manhã querendo ser da Al Qaeda e já o era. Ele foi o fundador, mas nunca um guerreiro em batalha. Não havia um computador em sua caverna, nem fazia chamadas para que detonassem bombas. Enquanto os ditadores árabes governavam sem que ninguém os enfrentasse, com apoio ocidental, evitavam até onde fosse possível criticar a política de Washington; só Bin Laden o fazia. Os árabes nunca quiseram explodir aviões de altos edifícios, mas admiravam o homem que dizia o que eles queriam dizer. Mas agora, cada vez mais, podem dizê-lo. Não precisam de Bin Laden. Ele se tornou um dom nada.

Falando de cavernas, a desaparição de Bin Laden lança uma luz sombria sobre o Paquistão. Durante meses, o presidente Alí Zardari nos disse que Osama vivia em uma caverna no Afeganistão. E agora descobrimos que ele vivia em uma mansão no Paquistão. Foi traído? Claro que sim. Pelos militares ou pelos serviços de inteligência do Paquistão? É muito provável que pelos dois. O Paquistão sabia onde estava.

Abbottabad não é só o lugar que abriga o colégio militar desse país – a cidade foi fundada pelo major James Abbott, do exército britânico, em 1853 -, como também é o quartel da segunda divisão do corpo do exército do norte. Há apenas um ano, fui atrás de uma entrevista com um dos criminosos mais procurados, o líder do grupo responsável pelos massacres de Bombaim. Encontrei-o na cidade paquistanesa de Lahore, protegido por policiais paquistaneses armados com metralhadoras.

Desde logo, há uma pergunta muito óbvia sem resposta: as forças de segurança do Paquistão não poderiam ter capturado Bin Laden? Por acaso a CIA e os Seals da Marinha dos EUA, ou as forças especiais, ou qualquer que seja a força estadunidense que o tenha morto não tinha os meios para lançar uma rede no tigre. Justiça: foi assim que Barack Obama definiu essa morte. Nos velhos tempos, Justiça significada devido processo legal, um tribunal, uma audiência, um defensor, um julgamento. Como os filhos de Saddam Hussein, Bin Laden foi morto a tiros. Claro, ele jamais quis que o pegassem vivo...e havia sangue em abundância na casa onde morreu.

Mas um tribunal teria preocupado muito mais a outras pessoas do que a Bin Laden. Afinal, depois de tudo o que aconteceu, poderia ter falado de seus contatos com a CIA durante a ocupação soviética do Afeganistão, ou de suas acolhedoras reuniões em Islamabad com o príncipe Turki, chefe da Inteligência da Arábia Saudita. Assim como Saddam Hussein – que foi julgado pelo assassinato de apenas 153 pessoas e não pelos milhares de kurdos vítimas de bombas químicas – foi enforcado antes que tivesse a oportunidade de nos contar sobre os componentes do gás fornecidos pelos EUA, sobre sua amizade com Donald Rumsfeld ou sobre a ajuda militar que recebeu de Washington quando invadiu o Irã, em 1980.

É estranho que Bin Laden não tenha sido o criminoso mais procurado pelos crimes internacionais de lesa humanidade do 11 de setembro de 2001. Ele ganhou seu status do velho oeste por ataques anteriores da Al Qaeda a embaixadas dos EUA na África e ao quartel do exército desse país, em Durban. Sempre estava à espera dos mísseis de cruzeiro...e eu também quando me reuni com ele. Ele esperava a morte antes, nas cavernas de Tora Bora, em 2001, quando seus guarda costas não o deixaram resistir e o obrigaram a cruzar as montanhas a pé até o Paquistão. Seguramente passou algum tempo em Karachi. Estava obcecado com essa cidade: até me deu fotografias de grafites apoiando a sua causa nos muros da antiga capital paquistanesa, e elogiava os imãs locais.

Suas relações com outros muçulmanos eram um mistério. Quando me reuni com ele no Afeganistão, no início ele tinha medo do talibã e não deixou que eu deixasse seu acampamento e fosse para Jalalabad à noite. E me entregou a seus guardas mais próximos da Al Qaeda para que me protegessem na viagem no dia seguinte. Seus seguidores odiavam os muçulmanos xiitas, considerando-os hereges. Para eles todos eram ditadores e infiéis, ainda que Bin Laden estivesse disposto a cooperar com os ex-baazistas iraquianos (aliados de Saddam Hussein) contra os ocupantes estadunidenses, o que afirmou em uma gravação de áudio a qual a CIA, tipicamente, não deu importância. Nunca elogiou o Hamas e dificilmente seria digno da definição de “guerreiro sagrado” que esse grupo dedicou a ela, o que foi parar, como de hábito, diretamente nas mãos israelenses.

Nos anos posteriores a 2001, tive uma débil comunicação indireta com Bin Laden. Certa vez, reuni-me com um dos sócios no qual confiava na Al Qaeda, em uma localidade secreta do Paquistão. Escrevi uma lista de 12 perguntas, a primeira das quais era óbvia: que tipo de vitória a Al Qaeda pode proclamar, uma vez que suas ações conduziram à ocupação de nações muçulmanas por Washington? Durante semanas não houve resposta. De repente, em um fim de semana, quando esperava para dar uma conferência em San Louis, Missouri, nos EUA, me disseram que a Al Jazeera acabava de difundir uma nova gravação de Bin Laden. E ele respondeu – sem fazer menção a minha lista – uma a uma minhas 12 perguntas. Ele queria que os estadunidenses fossem ao mundo muçulmano...para poder destruí-los.

Quando Daniel Pearl, jornalista do Wall Street Journal, foi sequestrado, escrevi um longo artigo no The Independent, no qual suplicava a Bin Laden para que salvasse a sua vida. Pearl e sua esposa cuidaram de mim quando fui golpeado na fronteira afegã, em 2001; ele inclusive me deu o conteúdo de seu livro de contatos. Muito tempo depois me disseram que Bin Laden tinha lido meu artigo com tristeza. Mas Pearl já havia sido assassinado. Ou pelo menos foi isso que ele teria dito.

As obsessões de Bin Laden infestaram a sua família. Uma esposa deixou-o, outras duas parecem ter morrido com ele no ataque estadunidense do domingo. Conheci um de seus filhos, Omar, no Afeganistão, em 1994; estava com seu pai. Era um menino simpático e perguntei se ele era feliz. Sim, me respondeu ele em inglês. Mas no ano passado ele publicou um livro chamado “Living Bin Laden”, no qual, ao descrever como seu pai matou os cães que ele amava em um experimento de guerra química, chamou-o de homem malvado. Neste livro, também recordou nosso encontro e concluiu que devia ter respondido que não era uma criança feliz.

Ao meio dia desta segunda-feira eu já tinha recebido três chamadas telefônicas de árabes, todos seguros de que os estadunidenses mataram um dublê de Bin Laden, do mesmo modo que muitos iraquianos acreditam que os filhos de Saddam Hussein não morreram em 2003 e que o próprio Saddam tampouco foi enforcado. No seu devido tempo, a Al Qaeda nos dirá. Certamente, se todos estamos equivocados e era um dublê, veremos mais um vídeo do verdadeiro Bin Laden...e o presidente Obama perderá a próxima eleição.

Tradução: Katarina Peixoto

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