Mino Carta 19 de março de 2011 às 17:27h
Pequena reflexão sobre as relações entre profissionais nativos e a diplomacia dos EUA, e sobre quem lhes dá crédito.
Pequena reflexão sobre as relações entre profissionais nativos e a diplomacia dos EUA, e sobre quem lhes dá crédito.
Por Mino carta. Foto: Reprodução
Como jornalista, recebi o melhor elogio de João Baptista Figueiredo. À beira de um churrasco celebrado em 1988 em companhia de colegas de pijama, o quinto e último ditador pós-golpe, também ele já apeado, gravou um depoimento em que lá pelas tantas fala de mim. Textual: “O Mino é um chato, se pudesse reescreveria os Evangelhos, Geisel o detestava, mas ele não tem rabo preso”.
Figueiredo me comparava a Roberto Marinho e Victor Civita, dos quais não tinha boa opinião: só o procuravam, dizia ele, para pedir favores de alto calibre. Evidente a confusão no confronto: Marinho e Civita são patrões e eu sou um profissional de imprensa. Há hoje em dia quem me pretenda empresário, apresso-me a esclarecer: faltam-me tino e espírito para tanto. Deu-se apenas que, depois de sair da Veja em fevereiro de 1976 ao me demitir para não levar um único escasso tostão do dono da Editora Abril, tive de inventar os meus empregos. De sorte a garantir um salário, até agora indispensável.
Perdoem se me alongo no assunto, mas os leitores, sempre generosos, entenderão ao cabo a sua pertinência. No caso da CartaCapital deixo claro que nunca vi a cor de um dividendo, o emolumento que costuma premiar os empresários. Não vi porque não houve. Sobra o salário, muito, incrivelmente inferior ao de qualquer diretor de redação da chamada grande imprensa. E nem se fale dos senhores da mídia eletrônica. As redações espelham a situação social do País com alguma fidelidade. Os graúdos ganham mais do que os colegas do mundo pretensamente primeiro, os miúdos ficam a léguas de distância a viver o terror da demissão.
Disso tudo, e razões outras, resulta um jornalismo de péssima qualidade. Quem tiver dúvidas, compare os produtos da nossa imprensa, jornais e revistas, com os similares europeus e alguns americanos. Os quais, aliás, nascem em redações bem menores e infinitamente mais competentes, ancoradas em profissionais que lidam com o vernáculo com desembaraço impensável por aqui, e carregam uma bagagem inatingível nas nossas latitudes de estudo e leituras importantes em lugar de inúteis diplomas. Sem contar que prestam seus serviços a uma mídia devidamente regulamentada por leis tão democráticas quanto inflexíveis.
Não sei se vale a pena acentuar certas diferenças, por mais evidentes, em um país que, em níveis sociais elevados, é o Bazil zil zil em vez do Brasil brasileiro da música. Popular, obviamente. Mas a turma de cima se dá ares, dirige pelas ruas como se fossem da sua propriedade e carrega para os restaurantes o vinho conservado em suas adegas climatizadas. E dizer que há poucos anos se encharcavam de uísque antes, durante e depois do jantar. Terrível é que se espraie um segundo time empenhado em seguir-lhes os passos. São estes os leitores da nossa imprensa. Haverá outros, está claro, entre eles os de CartaCapital, mesmo assim a leitura é coisa da minoria, não somos argentinos, muito menos ingleses, que diabo.
O episódio entre o ridículo e o grotesco que aponta em alguns jornalistas (jornalistas?) brasileiros outros tantos advisers da diplomacia dos EUA, revelado nos últimos dias pelo WikiLeaks, é altamente representativo da mediocridade dos atores. O jornalismo nativo e a diplomacia americana. Pergunto aos meus irônicos botões se eu não seria condescendente quando aludo à mediocridade. Não estaríamos diante de um fenômeno que a transcende? Gargalham com gosto, advertem contudo: não se trata de vendilhões da pátria, não caiamos em equívoco tão grosseiro. Trata-se é de sonhadores.
Sonhadores? Que os botões se expliquem. Reproduzo o raciocínio. Não são jornalistas, não se interessam pela verdade factual, pelo exercício do espírito crítico. Entregam-se ao devaneio, a uma ficção onírica, e mandam às favas as regras mais comezinhas da profissão. Se não, vejamos. Ao acaso: segundo um despacho do consulado americano do Rio para Washington, “o importante colunista político da revista Veja, Diogo Mainardi” expõe em sua coluna de uma edição de janeiro do ano passado o desejo de José Serra de ter Marina Silva como vice na chapa anti-Lula, manifestado durante almoço tête-à-tête ocorrido dias antes. E Aécio Neves onde fica? O principal officer sediado no Rio apressa-se a esclarecer em seu despacho que o importante colunista relatara anteriormente os termos de uma conversa com Neves, o qual se dissera “completamente aberto” à possibilidade de concorrer como vice de Serra. Muito antes, em entrevista a CartaCapital, o então governador de Minas havia excluído peremptoriamente esta chance, para negá-la oficialmente, de resto, dia 17 de dezembro de 2009.
Acontece que os diplomatas americanos leem sofregamente a imprensa nativa e não perdem o Jornal Nacional, e confiam na mídia sonhadora do pensamento único. Na lista dos especialistas e peritos em miragens consultados pelos americanos estão nomes ilustres. Merval Pereira, por exemplo. Nove dias depois de Mainardi, insistia na disposição já desmentida de Aécio Neves. William Waack, da TV Globo, e Helio Gurovitz, diretor de redação de Época, foram classificados pela própria embaixada como “os críticos mais duros de Rousseff”. Para Waack, Dilma é “incoerente”. Menos criativo, Gurovitz a definia como “o poste de Lula”. De todo modo o presidente não a elegeria, como se deu com o candidato da senhora Bachelet no Chile.
Não é que representantes de Tio Sam se diferenciem de nossos privilegiados, ao menos na escolha de suas leituras. Uns e outros preferem o devaneio, o sonho à realidade, a mentira à verdade factual. Deste caos mental participa boa parcela de empresários e publicitários, e a eles aludo porque esta é matéria fortemente relacionada com o destino de CartaCapital. Faz tempo surgem em cena senhores que se apresentam como jornalistas e que se aplicam na conta das páginas de publicidade desta revista. Concluem que a contribuição da publicidade “governista” é maior do que a da iniciativa privada. Não é bem assim.
Por que se dedicam a este mínimo esforço (às vezes não exige excessivo saber aritmético) até hoje não entendi. De quando em quando, entre o fígado e a alma formulo uma hipótese, não enobrece esses matemáticos mas não a declino por modéstia: aponta para a nossa invejável qualidade. Recorro, porém, e mais uma vez à verdade factual. Durante o reinado de Fernando Henrique Cardoso fomos esquecidos pela publicidade do seu governo, de certa forma perseguidos, na esperança, quem sabe, de que morrêssemos na praia. Recém-empossado em 2003, Lula me chamou a Brasília dia 15 de janeiro. Somos velhos amigos, desde o final de 1977, e ambos ficamos à vontade quando me perguntou: “Que podemos fazer por CartaCapital?” A esta altura da conversa estava presente também José Dirceu, chefe da Casa Civil. Respondi: “Peço apenas isonomia em relação à publicidade do governo”.
Assim foi, dentro das justas regras de que as nossas páginas são mais baratas que outras. Quem soma as inserções públicas em CartaCapital, se frequentasse a verdade factual teria de verificar o que acontece naquele mesmo instante nas outras semanais. Quanto ao setor privado, a conclusão é inescapável: inúmeros empresários, inúmeros publicitários, preferem o devaneio, tão bem contado pelos informantes e conselheiros que a nossa mídia fornece aos diplomatas americanos, à prática do jornalismo honesto, incapaz de confundir o wishful thinking com quanto acontece e, como dizia Hannah Arendt, “acontece porque é”. Mas até as nossas autoridades, frequentemente agredidas pela sonhadora mídia nativa, a prestigiam sempre que podem, em uma belíssima demonstração de humildade e caridade cristã.
CartaCapital não apoiou, nos limites dos seus alcances, as candidaturas de Lula em 2002 e 2006, e de Dilma em 2010, por qualquer motivo de identificação ideológica ou interesse material, e sim porque entendia serem as melhores para o Brasil brasileiro. Em outros países, esta definição não somente é de praxe, mas também demanda da opinião pública. Neste momento as circunstâncias me levam a perguntar aos meus céticos botões: vale a pena ser jornalista no Brasil? Eles agora se calam.
Mino Carta
Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br
Como jornalista, recebi o melhor elogio de João Baptista Figueiredo. À beira de um churrasco celebrado em 1988 em companhia de colegas de pijama, o quinto e último ditador pós-golpe, também ele já apeado, gravou um depoimento em que lá pelas tantas fala de mim. Textual: “O Mino é um chato, se pudesse reescreveria os Evangelhos, Geisel o detestava, mas ele não tem rabo preso”.
Figueiredo me comparava a Roberto Marinho e Victor Civita, dos quais não tinha boa opinião: só o procuravam, dizia ele, para pedir favores de alto calibre. Evidente a confusão no confronto: Marinho e Civita são patrões e eu sou um profissional de imprensa. Há hoje em dia quem me pretenda empresário, apresso-me a esclarecer: faltam-me tino e espírito para tanto. Deu-se apenas que, depois de sair da Veja em fevereiro de 1976 ao me demitir para não levar um único escasso tostão do dono da Editora Abril, tive de inventar os meus empregos. De sorte a garantir um salário, até agora indispensável.
Perdoem se me alongo no assunto, mas os leitores, sempre generosos, entenderão ao cabo a sua pertinência. No caso da CartaCapital deixo claro que nunca vi a cor de um dividendo, o emolumento que costuma premiar os empresários. Não vi porque não houve. Sobra o salário, muito, incrivelmente inferior ao de qualquer diretor de redação da chamada grande imprensa. E nem se fale dos senhores da mídia eletrônica. As redações espelham a situação social do País com alguma fidelidade. Os graúdos ganham mais do que os colegas do mundo pretensamente primeiro, os miúdos ficam a léguas de distância a viver o terror da demissão.
Disso tudo, e razões outras, resulta um jornalismo de péssima qualidade. Quem tiver dúvidas, compare os produtos da nossa imprensa, jornais e revistas, com os similares europeus e alguns americanos. Os quais, aliás, nascem em redações bem menores e infinitamente mais competentes, ancoradas em profissionais que lidam com o vernáculo com desembaraço impensável por aqui, e carregam uma bagagem inatingível nas nossas latitudes de estudo e leituras importantes em lugar de inúteis diplomas. Sem contar que prestam seus serviços a uma mídia devidamente regulamentada por leis tão democráticas quanto inflexíveis.
Não sei se vale a pena acentuar certas diferenças, por mais evidentes, em um país que, em níveis sociais elevados, é o Bazil zil zil em vez do Brasil brasileiro da música. Popular, obviamente. Mas a turma de cima se dá ares, dirige pelas ruas como se fossem da sua propriedade e carrega para os restaurantes o vinho conservado em suas adegas climatizadas. E dizer que há poucos anos se encharcavam de uísque antes, durante e depois do jantar. Terrível é que se espraie um segundo time empenhado em seguir-lhes os passos. São estes os leitores da nossa imprensa. Haverá outros, está claro, entre eles os de CartaCapital, mesmo assim a leitura é coisa da minoria, não somos argentinos, muito menos ingleses, que diabo.
O episódio entre o ridículo e o grotesco que aponta em alguns jornalistas (jornalistas?) brasileiros outros tantos advisers da diplomacia dos EUA, revelado nos últimos dias pelo WikiLeaks, é altamente representativo da mediocridade dos atores. O jornalismo nativo e a diplomacia americana. Pergunto aos meus irônicos botões se eu não seria condescendente quando aludo à mediocridade. Não estaríamos diante de um fenômeno que a transcende? Gargalham com gosto, advertem contudo: não se trata de vendilhões da pátria, não caiamos em equívoco tão grosseiro. Trata-se é de sonhadores.
Sonhadores? Que os botões se expliquem. Reproduzo o raciocínio. Não são jornalistas, não se interessam pela verdade factual, pelo exercício do espírito crítico. Entregam-se ao devaneio, a uma ficção onírica, e mandam às favas as regras mais comezinhas da profissão. Se não, vejamos. Ao acaso: segundo um despacho do consulado americano do Rio para Washington, “o importante colunista político da revista Veja, Diogo Mainardi” expõe em sua coluna de uma edição de janeiro do ano passado o desejo de José Serra de ter Marina Silva como vice na chapa anti-Lula, manifestado durante almoço tête-à-tête ocorrido dias antes. E Aécio Neves onde fica? O principal officer sediado no Rio apressa-se a esclarecer em seu despacho que o importante colunista relatara anteriormente os termos de uma conversa com Neves, o qual se dissera “completamente aberto” à possibilidade de concorrer como vice de Serra. Muito antes, em entrevista a CartaCapital, o então governador de Minas havia excluído peremptoriamente esta chance, para negá-la oficialmente, de resto, dia 17 de dezembro de 2009.
Acontece que os diplomatas americanos leem sofregamente a imprensa nativa e não perdem o Jornal Nacional, e confiam na mídia sonhadora do pensamento único. Na lista dos especialistas e peritos em miragens consultados pelos americanos estão nomes ilustres. Merval Pereira, por exemplo. Nove dias depois de Mainardi, insistia na disposição já desmentida de Aécio Neves. William Waack, da TV Globo, e Helio Gurovitz, diretor de redação de Época, foram classificados pela própria embaixada como “os críticos mais duros de Rousseff”. Para Waack, Dilma é “incoerente”. Menos criativo, Gurovitz a definia como “o poste de Lula”. De todo modo o presidente não a elegeria, como se deu com o candidato da senhora Bachelet no Chile.
Não é que representantes de Tio Sam se diferenciem de nossos privilegiados, ao menos na escolha de suas leituras. Uns e outros preferem o devaneio, o sonho à realidade, a mentira à verdade factual. Deste caos mental participa boa parcela de empresários e publicitários, e a eles aludo porque esta é matéria fortemente relacionada com o destino de CartaCapital. Faz tempo surgem em cena senhores que se apresentam como jornalistas e que se aplicam na conta das páginas de publicidade desta revista. Concluem que a contribuição da publicidade “governista” é maior do que a da iniciativa privada. Não é bem assim.
Por que se dedicam a este mínimo esforço (às vezes não exige excessivo saber aritmético) até hoje não entendi. De quando em quando, entre o fígado e a alma formulo uma hipótese, não enobrece esses matemáticos mas não a declino por modéstia: aponta para a nossa invejável qualidade. Recorro, porém, e mais uma vez à verdade factual. Durante o reinado de Fernando Henrique Cardoso fomos esquecidos pela publicidade do seu governo, de certa forma perseguidos, na esperança, quem sabe, de que morrêssemos na praia. Recém-empossado em 2003, Lula me chamou a Brasília dia 15 de janeiro. Somos velhos amigos, desde o final de 1977, e ambos ficamos à vontade quando me perguntou: “Que podemos fazer por CartaCapital?” A esta altura da conversa estava presente também José Dirceu, chefe da Casa Civil. Respondi: “Peço apenas isonomia em relação à publicidade do governo”.
Assim foi, dentro das justas regras de que as nossas páginas são mais baratas que outras. Quem soma as inserções públicas em CartaCapital, se frequentasse a verdade factual teria de verificar o que acontece naquele mesmo instante nas outras semanais. Quanto ao setor privado, a conclusão é inescapável: inúmeros empresários, inúmeros publicitários, preferem o devaneio, tão bem contado pelos informantes e conselheiros que a nossa mídia fornece aos diplomatas americanos, à prática do jornalismo honesto, incapaz de confundir o wishful thinking com quanto acontece e, como dizia Hannah Arendt, “acontece porque é”. Mas até as nossas autoridades, frequentemente agredidas pela sonhadora mídia nativa, a prestigiam sempre que podem, em uma belíssima demonstração de humildade e caridade cristã.
CartaCapital não apoiou, nos limites dos seus alcances, as candidaturas de Lula em 2002 e 2006, e de Dilma em 2010, por qualquer motivo de identificação ideológica ou interesse material, e sim porque entendia serem as melhores para o Brasil brasileiro. Em outros países, esta definição não somente é de praxe, mas também demanda da opinião pública. Neste momento as circunstâncias me levam a perguntar aos meus céticos botões: vale a pena ser jornalista no Brasil? Eles agora se calam.
Mino Carta
Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br
Mino creio que a pena ser jornalista como você, com dignidade. A voz que clama no deserto.
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