quinta-feira, 3 de junho de 2010

Democracia e direito: dois pesos e duas medidas

Publicado no Portal do Nassif

29/05/2010 - 08:22

A liberdade como valor universal

Por Jotavê

Precisamos começar a refletir a respeito da ideologia democratista patrocinada pelos EUA e repercutida pela direita do mundo todo – aqui inclusive. Trata-se de uma ideologia, pois seu objetivo principal é causar uma refração discursiva que oculte os interesses efetivos em jogo e evite a discussão de temas indigestos. Saddam Hussein é um bom exemplo. Um país é reduzido a ruínas, milhares de pessoas morrem numa guerra trazida de fora com a desculpa de se impedir a produção de “armas químicas”. Depois que o desastre se consuma, vem a constatação timidamente feita de que não havia arma química alguma no Iraque. Era tudo mentira. Mas, apesar disso, a guerra valeu a pena. Por quê? Porque Saddam Hussein era um ditador, e a guerra abre a possibilidade de a democracia finalmente se estabelecer no Iraque. Parece brincadeira de mau gosto, mas é política de Estado. Ideologia, no pior sentido da palavra, em estado bruto.
Chamei essa ideologia de “democratista” para que a palavra “democrática” fique reservada a usos mais apropriados. Não se trata, aqui, de uma defesa (por enviesada que fosse) da democracia, mas da mera INSTRUMENTALIZAÇÃO dessa defesa. Ela é o oposto, portanto, de uma postura genuinamente democrática.
Quando instrumentalizamos uma pessoa, uma causa, uma ideia, nós imediatamente atribuímos a essa pessoa, a essa causa, a essa ideia um valor apenas relativo. Ela nos serve enquanto tivermos em vista um determinado fim. Passado esse momento, ela poderia (em princípio) ser descartada. É isso que a democracia significa para o democratismo: uma alavanca, um amaciante para carne de segunda, um papel de embrulho. Serve para justificar o envio de tropas. Quando as botas estão sobre o pescoço do inimigo, passa-se rapidamente ao próximo assunto, como se aqueles horrores fossem apenas uma etapa necessária no caminho que leva até a Liberdade.
É hora de encararmos esse debate indo até a raiz do problema. A liberdade é um valor universal? É, sem dúvida. Mas não é o único, nem o mais alto. Há outros valores, que podem ser menos ou mais altos, conforme forem menos ou mais urgentes numa determinada situação. Igualdade é um valor absoluto. Justiça, outro. Paz, outro. Esses valores todos têm um enorme significado para o ser humano, e nenhum deles é garantia nem pré-condição para nenhum outro. É fácil encontrar exemplos na história de períodos em que a paz significou algo muito mais precioso do que a liberdade, e durante os quais pessoas absolutamente sensatas e bem intencionadas julgaram razoável que a segunda fosse sacrificada em favor da primeira. É dessa perspectiva que Maquiavel escreve, por exemplo. É dessa perspectiva que fala Paul Kagame, presidente da Ruanda. Não percam a entrevista no The Guardian:
http://www.guardian.co.uk/world/2010/may/28/rwanada-kagame-defends-rights-record

Há outras época históricas em que a liberdade pareceu um valor muito mais alto que a própria paz. A Revolução Francesa, com todas as suas contradições, pode ser lida dessa forma. A independência norte-americana, também. A Segunda Guerra, com mil senões e cuidados, idem. Cuba é exemplo de liberdade? É claro que não. Cuba é uma ditadura – branda, é verdade, mas ditadura, de todo modo. Isso quer dizer que Cuba seja o Anticristo? É claro que não. Ela encarna um valor importantíssimo para o ser humano – a igualdade. Assim como o Brasil, com todas as suas calamidades sociais, encarna valores importantes, Cuba, com todas as suas fraquezas e deficiências, também encarna. Um mundo menos mesquinho lutaria para que aquela experiência desse certo. Apoiaria como pudesse o que aquela sociedade tem de melhor, e torceria para que ela corrigisse em paz as suas limitações.

Refletir a respeito dessas questões e admitir que a liberdade tem que competir no mercado de valores pela sua sobrevivência não é desprezar a democracia. Pelo contrário. Isto, sim, é ter apreço por ela, e reconhecê-la enquanto valor a ser PRESERVADO. Admitindo que ela não sobrevive em qualquer ambiente, que ela tem precondições indispensáveis para firmar raízes e dar frutos, mostramos um interesse genuíno (e não meramente instrumental) por ela. Queremos a democracia, e justamente por isso queremos paz, justiça e igualdade. Sem estes elementos, e sem o reconhecimento sincero de que eles são valores tão importantes quanto a liberdade para qualquer ser humano, a defesa da democracia corre sempre o risco de se transformar numa farsa grotesca, como vimos no caso do Iraque, e estamos a um passo de ver no caso do Irã.

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